Escritora paraibana radicada no RN transforma memórias da pandemia em crônicas tocantes no livro Misto-quente e álcool em gel

A pandemia de Covid-19 marcou vidas, desfez rotinas e deixou cicatrizes profundas — muitas das quais ainda estamos aprendendo a compreender. Para a escritora e professora Ana Simony Oliveira, esse foi também um tempo de escrita, reflexão e resistência. Em entrevista à escritora e jornalista Romarta Ferreira, Ana compartilha os bastidores de seu livro Misto-quente e álcool em gel, lançado pela Editora Sanhauá, no qual diferentes personagens narram, com sensibilidade e realismo, como enfrentaram o isolamento, o medo e as pequenas esperanças daquele período.

Nascida na Paraíba e atualmente morando em Passa e Fica, no Rio Grande do Norte, Ana Simony também fala sobre sua trajetória como autora, suas inspirações literárias e a crença no poder das palavras para transformar dor em memória, e memória em literatura. O resultado é um retrato honesto e comovente de uma escritora que aposta na empatia como ponto de partida para narrar o mundo.

Leia a entrevista completa a seguir.

  • Quem é Ana Simony Oliveira e como surgiu o seu amor pela literatura?

Eu sou uma pessoa bem introspectiva, e acredito que esse meu traço de personalidade tenha influenciado em minhas criações, considerando que essa minha introspecção me permita observar e ouvir o mundo e, a partir disso, contar essas histórias ou externar as minhas reflexões. Para além disso, sou professora de escola pública e pesquisadora na área de Literatura, a qual posso dizer que meu amor por essa área surgiu ainda criança, criando meus próprios livrinhos de histórias ilustradas e lendo clássicos do Ziraldo e Monteiro Lobato e as coleções Vagalume.

  • Fale sobre sua trajetória literária, sobre seus livros publicados.

Apesar de ter começado a escrever ainda criança, e na adolescência também produzir histórias inacabadas, foi só na fase adulta que consegui, de fato, juntar material o suficiente para um livro. Meu primeiro livro publicado, intitulado “Água de Caju”, é um conjunto de crônicas e contos que escrevi num período de muitos anos. Já o segundo, que recebe o nome de “Misto-quente e álcool em gel”, também um livro de crônicas, são histórias fictícias meramente baseadas em acontecimentos do período da pandemia do Covid-19.

  • Em que momento você se descobriu como escritora?

No momento em que, após uma atividade escolar na 4ª série, em que consistia criar histórias em quadrinhos dos contos de fadas lidos em aula, eu decidi, por vontade própria, continuar a criar histórias ilustradas. Porém, dessa vez, as histórias sairiam da minha mente. Depois disso, não tirei mais da cabeça que queria ser escritora.

  • Quais autores e autoras te inspiram?

Tenho grande admiração por Lygia Fagundes Telles. Sou fã das suas críticas sociais inseridas em suas obras literárias e a forma como busca valorizar a figura feminina. Mas tento me espelhar muito também em Clarice Lispector, que também segue a linha de fluxo de consciência que Lygia chegou a utilizar em algumas obras. Também me inspiro em Caio Fernando Abreu, onde busco referências mais dramáticas e intimistas.

  • O que você diria para um/a futuro/a escritor/a?

Para nunca deixar de escrever. Escrever sobre tudo, que quer e até o que não quer, mas que acha necessário escrever por ser uma mensagem importante que queira passar para o mundo. E sempre aperfeiçoar a escrita, lendo muito, para poder se inspirar, e sempre revisar as obras. Revisões nunca são demais.

  • Seu segundo livro, o Misto-quente e álcool em gel, lançado recentemente pela Editora Sanhauá é formado por uma série de crônicas com personagens diferentes, cada um vivendo a Pandemia Covid-19 de maneira única. Por que você optou por essa estrutura em mosaico ao invés de uma narrativa única?

Porque eu queria representar diferentes perspectivas do que estava acontecendo e achei que esse tipo de narrativa teria mais força que se esses personagens fossem apresentados por um único ponto de vista de um personagem narrador. Eu também acho a narrativa em primeira pessoa muito eficaz no sentido de imersão no personagem, e foi por isso também que preferi ela ao invés da narrativa em terceira pessoa.

Muitos dos relatos são extremamente sensíveis e vívidos. Quanto dessas histórias veio de experiências pessoais ou de pessoas próximas?

Muitos detalhes descritos eram comuns a rotina de qualquer um, além das mudanças que tivemos que passar naquela época, há outros detalhes como o fato de algum personagem se incomodar com a forma como algumas pessoas agiam de forma irresponsável, ou até o contrário, de alguns vendo tudo aquilo como um exagero. Mas tirando isso, boa parte dos personagens e situações eu me inspirei em pessoas que eu via nas reportagens ou notícias nas redes sociais de como essas pessoas estavam lidando com aquela realidade.

  • Escrever sobre um período tão recente e traumático como a pandemia pode ser emocionalmente intenso. Como foi para você lidar com essas memórias durante o processo de escrita?

Era como se eu estivesse vivenciando aquilo tudo em dobro, porque além da situação real, eu ficava relembrando coisas que via no dia no momento em que escrevia também. Tudo foi em tempo real, não é como se eu tivesse escrito anos depois. Escrever sobre algo tão sério e com muitos gatilhos dolorosos que envolviam doença, morte e impotência diante de tudo o que ocorria foi, de fato, bem difícil.

  • Você pensou em um público específico ao escrever o livro? Havia uma intenção de dialogar com algum grupo em especial?

Não pensei muito nisso no processo de escrita, apenas queria escrever sobre e ia escrevendo o que vinha na cabeça. Minha intenção era somente registrar aquela realidade de forma literária, como uma maneira de preservar a memória e poder apresentar, ainda que ficcionalmente, aquele período para futuras gerações também.

  • Qual é o impacto que você espera causar nos leitores com esta obra? Há uma mensagem que você espera que ecoe depois da leitura?

As várias perspectivas foram intencionais também para que o leitor pudesse “acessar” a mente de personagens que poderiam ser facilmente vistos em qualquer lugar do mundo. Com isso, observar aquele contexto de uma visão diferente da sua e poder criar uma identificação ou empatia. Em resumo, a mensagem que gostaria de difundir é a de que pode haver beleza em meio ao caos, que há formas de se reinventar e também ver os outros com um olhar mais acolhedor e compreensivo.

  • Qual o/a seu/sua personagem favorito/a em Misto-quente e álcool em gel? Por quê?

Minha preferida é a Beatriz, carinhosamente chamada de “Bia”, pelo fato de ser uma criança e ter o olhar mais puro de todos que aparecem. Também gosto desse ponto de vista por apresentar uma linguagem diferente das demais, mais infantil e inocente, com elementos imaginários e uma semiótica que acredito que enriquece muito a experiência do leitor. Além do mais, esse tipo de narrativa me é bastante atrativa e até pretendo criar um livro infantil algum dia em que eu possa explorar ainda mais essas características.

Ana Simony Oliveira é graduada em Letras (Português/Inglês) pela Universidade Estadual da Paraíba e Mestra em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atua como professora na rede estadual de ensino do Rio Grande do Norte.