(ao meu irmão, José Belarmino, In memoriam)
Lonjuras Existem? Fiz-me essa pergunta pela primeira vez em maio de 2020, quando a pandemia do covid 19 arrancava pessoas da vida como se elas fossem ervas daninhas. Foi poucos dias depois do dia 13 de maio, quando meu irmão foi arrancado da nossa vida, que me perguntei sobre lonjuras e escrevi um micro conto triste que dizia: …Contemplo minha tela, minha sala, minha casa. Contemplo minha ideia de mundo lá fora. Tudo como num instantâneo. Lonjuras existem. Lonjuras são espaços de vazio e de silêncio. Lonjuras são braços estendidos, dedos esticados, e nada para tocar. Lonjuras são pensamentos, como pedras atiradas a um lago profundo, sem qualquer ressoar. Hoje sinto como que uma bruma, densa, gelada, impedindo as lembranças, impedindo a memória do som da tua voz, impedindo um lugar perto, para a fala da gente. Lonjuras existem, mano. Lonjuras existem, e são muito mais prováveis que as proximidades.
Naqueles dias eu andava como que habitando um lugar tão distante, inóspito e hostil, ainda que estivesse em minha casa, com a notícia que ensopava meu coração de angústia. Meu irmão, companheiro de toda minha vida tinha acabado num saco preto todo lacrado, um saco preto que impedia qualquer aproximação, qualquer espaço de conforto, por mínimo que fosse.
Não sei por que me lembrei disso hoje. Ontem eu estava entre dormindo e acordada, e de repente escutei o som de uma revoada de quero-queros. Foi muito estranho porque um desses pássaros parece que estava perto de mim, acima da minha rede avarandada, na minha sala cheia de brisa, me dizendo algo, do alto da noite avançada.
Tentei abrir os olhos, mas estava tão sonolenta. Sim, o pássaro estava ali, bem perto, falando comigo.
Por alguma razão, associei esse episódio à minha reflexão sobre lonjuras. Como se a ave me tivesse trazido uma resposta, um alento, um acalanto, uma ternura para a inutilidade dos meus braços estendidos. Será?
Pássaros são seres que me encantam, Valeska Asfora, e depois de ter lido a sua crônica, decidi também escrever sobre os meus pássaros. Quando eu era criança, ficava brincando sozinha no oitão da casa, onde pássaros voavam alegres sempre cantando. Eu tinha uma inveja danada deles. Queria voar como os pássaros, mas só conseguia rodopiar e gritar, enquanto o vento encarniçado do sertão arrepelava meus cabelos.
Tenho pena de não poder enxergar as cores lindas dos pássaros, o formato dos seus bicos, a beleza aerodinâmica das suas assas. Eu os admiro de qualquer maneira. Imagino que eles têm uma missão especial na terra, e a cumprem com maestria, disciplina e doçura.
Imagino que a fala repetida e cantante dos pássaros é rica em informação, e deve nutrir o conjunto da vida com a seiva da ternura.
E, acredite se quiser. A tarde avança suavemente para a noite. Nessa hora, os pássaros fazem a sua prece, a sua fala terna. Escuto o quero-quero ao longe, em meio ao barulho do trânsito.
Encantada, revisito o momento daquela noite, entre o sono e a vigília, examino de novo a voz do pássaro que me disse algo, enquanto seus companheiros o chamavam à distância.
O que me disse aquele pássaro não tem tradução certa, mas encheu meu coração de uma certeza: Lonjuras e proximidades são uma mesma força, um mesmo sentimento, vivente ou amortecido, que nos alegra ou nos entristece. Lonjuras e proximidades são a mesma força que em algum lugar, preenche os braços estendidos do calor do abraço, ou deixa que a única proximidade seja a dos dedos esticados, palpando o vazio.
Não tenho dúvida de que aquele pássaro me entregou um telegrama com mais de três anos de espera. Um telegrama que me dizia, em sílabas curtas, que perto e longe são percepções, que abraços podem ser reais ou imaginados, mas esquentam o coração da gente, de qualquer maneira.
E me lembrei dos dias da nossa infância, eu e meu irmão escutando juntos o canto dos pássaros: O alegre canto dos bem-te-vis, o canto triste da acauã, o tom grave do canto da rolinha. Abracei meu irmão em pensamento e soube que por longo tempo habitamos o mesmo mundo, escutamos os mesmos pássaros, e como que aprendemos juntos a lição sobre lonjuras e proximidades.
Joana Belarmino
Jornalista, mestra em Ciências Sociais, Doutora em Comunicação e Semiótica. professora titular colaboradora do Programa de Pós-graduação em jornalismo da UFPB,contista e membro do Clube do Conto da Paraíba.