O Conselho Regional de Medicina da Paraíba (CRMPB) é uma instituição que busca “aprimoramento da relação médico-paciente, qualificação permanente e de melhores condições de trabalho, que se traduzam em segurança, dignidade profissional e resposta aos anseios da sociedade”. Foi instalada em 1958 visando “desenvolver suas atividades em consonância com as normas estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e pela lei nº 3.268/57, regulamentada pelo decreto nº 44.045/58.” Sendo assim, órgão fiscalizador e supervisor da ética médica no estado da Paraíba. Tem como missões: “Promover ações fiscalizadoras, reguladoras, judicantes e educacionais, fazendo valer as normativas do Código de Ética Médica e demais atribuições instituídas por lei, a fim de garantir o exercício ético da profissão em benefício da sociedade.” Reforçando valores como: “ética, justiça, humanismo, qualificação, transparência, comprometimento e responsabilidade social.”

O Código de Ética Médica (CEM) é o documento oficial que “contém as normas que devem ser seguidas pelos médicos no exercício de sua profissão, inclusive nas atividades relativas a ensino, pesquisa e administração de serviços de saúde, bem como em quaisquer outras que utilizem o conhecimento advindo do estudo da medicina. “Seu último texto entrou em vigor em abril de 2019, atualizando uma versão prévia de 2009, visando incorporar “abordagens pertinentes às mudanças do mundo contemporâneo” e promoveu alterações principalmente para uso de redes sociais por médicos no exercício da profissão além de reafirmar outros compromissos éticos da relação médico-paciente. As mudanças foram feitas considerando propostas enviadas por associações médicas, sociedades de especialidades, entidades de ensino médico, dentre outras organizações. Também participaram do processo médicos regularmente inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina, sendo as sugestões analisadas pela Comissão Nacional de Revisão do Código de Ética Médica do CFM e validadas em três encontros regionais específicos para tratar do tema, além de Conferências Nacionais de Ética Médica.

Em setembro de 2023, um caso de violência doméstica tomou repercussões nacionais envolvendo um médico paraibano e sua namorada, uma estudante de medicina. A mulher após sofrer agressões verbais, psicológicas, físicas por um ano, tomou coragem e denunciou o agressor, um conhecido médico da cidade de João Pessoa. Junto à denúncia, há imagens fortes que mostram o homem agredindo-a em pelo menos duas ocasiões que rodaram o país inteiro. Os maiores portais de notícias do país estamparam a reportagem, (no Fantástico, SBT Brasil, Band News e outros), incluindo uma entrevista emocionante que a vítima concedeu ao Fantástico. O Brasil inteiro se revoltou com a situação. O caso corre na justiça, mas a intenção desse texto não é discutir a condenação judicial desse agressor, a discussão é sobre violência contra mulher e fiscalizadores da prática médica.

Uma sindicância foi instaurada no CRMPB contra o médico à época do ocorrido e na semana passada o CRMPB se posicionou publicamente dizendo “O Conselho Regional de Medicina é um tribunal de julgamento ético. Ele não age sobre a esfera civil ou penal. Então, apesar do conselho não concordar com nenhum tipo e nenhuma forma de violência, principalmente contra mulher, crianças e idosos em si, quando uma pessoa faz isso dentro da sua vida privada, não é o conselho o órgão competente para fazer tal julgamento”, explicou o presidente do CRM Bruno Leandro. Sobre essa fala de Bruno, hoje, em pleno 2024, só posso lamentar, pois, de fato, a regulação médica atual só pode interferir em casos de violência contra mulher envolvendo médicos durante o exercício da profissão, o que não foi o caso.

Mas será que a postura do CRMPB foi suficiente? É suficiente do ponto de vista ético de cumprir o compromisso de justiça social visando benefício da sociedade? É suficiente no que diz respeito a tudo que o CRMPB poderia fazer?

Vamos analisar:

Na Paraíba, dez mulheres são vítimas de violência doméstica por dia. Em 2020, foram registrados 3.932 casos, e houve um aumento nos números entre 2019 e 2020. A violência doméstica é a principal forma de violência contra a mulher no Estado. Em 2022, 85 mulheres foram assassinadas. O Brasil está enfrentando um aumento em todas as formas de violência contra as mulheres. Uma pesquisa que analisou dados de 2022 revelou que mais de 18 milhões de mulheres foram vítimas de violência naquele ano, com mais de 50.000 vítimas por dia. Uma em cada três mulheres brasileiras (33,4%) com mais de 16 anos de idade sofreu violência física e/ou sexual de seus parceiros, uma taxa maior do que a média global de 27%.

O CRMPB assistiu um caso de repercussão nacional de violência doméstica envolvendo um médico e uma estudante de medicina e sua postura foi a de postar um vídeo de repúdio a violência doméstica e se esquivar de demais discussões sobre o assunto. Não, isso não é suficiente.

Nos últimos anos inúmeras foram as notícias de situações de violência contra mulher veiculadas no Brasil nacional e localmente por médicos nas esferas pessoais e profissionais. Em uma pesquisa rápida que fiz entre colegas médicos, a maioria não entende que violência contra mulher é diferente de violência doméstica e, por isso, não enxerga a necessidade de uma sessão específica que proteja mulheres dentro do CEM, que considere o fenômeno social de violência de gênero contra mulheres como algo particular completamente diferente de uma definição simplista de violência ou de respeito que é abordada pelo CEM. Apesar da violência doméstica considerar um vínculo, e dever sim ser investigada no âmbito criminal, fora da seara médica, a violência contra mulher está em toda parte e médicos que a comete precisam ter suas condutas éticas revistas sim, pois estão lidando com mulheres diariamente em seus consultórios.

O CEM não possui uma linha sequer que considere a proteção de mulheres dentro do ambiente médico nem enquanto pacientes nem enquanto médicas. O CEM não reconhece termos internacionalmente aceitos na área médica no que diz respeito à violência de gênero como “violência obstétrica”. A CEM falha com as mulheres e vem falhando mesmo após se atualizar. O CRMPB perdeu uma ótima oportunidade de levantar nacionalmente a discussão sobre proteção a mulheres na esfera do exercício da profissão médica. Mas ainda há o que fazer, CRMPB, a seguir listo sugestões de como vocês deveriam (ainda dá tempo) ter se posicionado sobre o tema violência contra mulher:

É necessário incluir as discussões de perspectiva de gênero e violência de gênero no exercício da profissão médica. Primeiro, se consideramos o caráter educativo das atividades do CRM, dá para fazer uma série de educação para médicos sobre violência contra mulher em ambientes médicos.

Segundo, uma vez que o CEM é revisado considerando também demandas dos conselhos regionais, o CRMPB, vendo tamanha repercussão de um caso de violência contra mulher cometido por um médico contra uma estudante de medicina, mesmo que fora do exercício da profissão, poderia aproveitar a discussão sobre o assunto para registrar uma demanda de atualização futura do CEM no sentido de incluir proteção a mulheres. Auxiliando médicos e médicas a identificarem e combaterem violência contra mulher no exercício da profissão médica, sejam mulheres médicas ou pacientes.

Terceiro, uma análise da Lei:

A Lei No 3.268, de 30 de setembro de 1957, que dispões sobre os Conselhos de Medicina diz:

Art . 5º São atribuições do Conselho Federal:

  1. a) organizar o seu regimento interno;
  2. b) aprovar os regimentos internos organizados pelos Conselhos Regionais;
  3. d) votar e alterar o Código de Deontologia Médica, ouvidos os Conselhos Regionais;

Art . 15. São atribuições dos Conselhos Regionais:

  1. a) deliberar sobre a inscrição e cancelamento no quadro do Conselho;
  2. d) conhecer, apreciar e decidir os assuntos atinentes à ética profissional, impondo as penalidades que couberem;
  3. e) elaborar a proposta do seu regimento interno, submetendo-a à aprovação do Conselho Federal;

Sendo assim, o que ocorreu com esse médico HOJE não pode ser julgado pelo CRMPB porque não há regimento para isso. Mas o CRMPB pode provocar uma mudança no seu regimento interno para cassar médicos envolvidos em casos de violência doméstica (violência contra mulher de maneira geral), mesmo que fora do exercício da profissão, e impedir seus registros, como fizeram os seguintes órgãos: Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público, magistratura, forças policiais e militares.

Ou seja, CRMPB, dá pra fazer mais!

Priscila Werton –  Médica pela UFCG CRMPB 11785Mestranda em Direitos Humanos pela University of Manitoba, Winnipeg, Canadá. @priscilawerton

 

 

 

VERSÃO EM INGLÊS

WHAT’S UP, CRMPB? LET’S DO SOME MORE.

Established in 1958, the Paraiba Regional Medical Council (CRMPB, in Portuguese) is a local institution aligned with Federal Council of Medicine (CFM) regulations and Law No. 3.268/57 to oversee medical ethics in Paraiba. Its mission involves enforcing the Code of Medical Ethics (CEM) and legal and educational obligations to ensure ethical medical practice for societal benefit. The CEM is the central instrument that guides physicians in their professional conduct. It was last updated in April 2019, with proposals from medical bodies undergoing analysis by the CFM’s National Commission and receiving validation during regional and national conferences on medical ethics.

In September 2023, a high-profile case of domestic violence gained national attention, involving a well-known doctor from João Pessoa, Paraíba, and his girlfriend, a medical student. The victim, enduring a year of verbal, psychological, and physical abuse, bravely reported the incidents. Disturbing images capturing the assaults went viral, drawing attention from relevant news portals like Fantástico, SBT Brasil, and Band News. The entire country reacted. While the case is now in court, the focus of the following discussion is not on the legal proceedings against the aggressor but on violence against women and the oversight of medical professionals.

After an investigation initiated at the time of the incident, the CRMPB recently made a public statement clarifying its role. The council, primarily a court of ethical judgment, does not have jurisdiction in civil or criminal matters, such as domestic violence. While expressing disapproval of any violence, especially against vulnerable groups, the CRMPB, represented by President Bruno Leandro, emphasized its limited authority in private life matters. Regrettably, current medical regulations only allow interference in cases of violence against women involving doctors during the exercise of their profession, which does not apply in this instance.

But does the CRMPB’s position satisfy ethical standards in fulfilling its commitment to social benefit? Does it encompass all possible actions the CRMPB could take?

In Paraiba, domestic violence is the predominant form of aggression against women; it affects ten women daily, with 3,932 cases reported in 2020. Disturbingly, one in three Brazilian women (33.4%) over 16 suffered physical or sexual violence from their partners, surpassing the global average of 27%. The CRMPB’s response to a national case of domestic violence involving a doctor and a medical student by posting a video condemning domestic violence but refraining from further engagement on the matter is deemed inadequate.

In recent years, numerous reports have surfaced regarding violence against women in Brazil, involving doctors in both personal and professional contexts. A quick survey among my doctor colleagues reveals that a majority fail to distinguish between violence against women and domestic violence. Consequently, they question the necessity of a specific section within the CEM to address gender-based violence, viewing it as a distinct social issue beyond the CEM’s scope. While domestic violence is rightfully discussed in the criminal sphere, instances of violence against women by doctors demand ethical scrutiny, given their daily interactions with female patients in medical settings.

The CEM lacks provisions for protecting women within the medical environment, whether as patients or doctors. It does not acknowledge internationally recognized terms like “obstetric violence” related to gender-based violence. Despite updates, the CEM remains short in addressing women’s issues. The CRMPB missed a crucial opportunity to stimulate a national discourse on women’s protection in medical practice. However, there’s still a chance for the CRMPB to take a stand on the issue of violence against women. Here are suggestions on how they could do better:

Addressing gender-based violence against women in the medical profession is urgent. To start, the CRMPB could conduct educational courses for doctors on gender perspectives, leveraging its role in promoting education within the medical community.

Considering that CEM is revised based on regional council demands, the CRMPB, prompted by a notable case of gender-based violence against a medical student by a doctor, could utilize this discussion to advocate for CEM changes in incorporating provisions to protect women and aiding doctors in recognizing and addressing violence against women within the medical profession, irrespective of their roles as practitioners or patients.

Law No. 3.268, 1957, which deals with the medical councils, states in article 15 that the regional councils are responsible for a) deciding on registration and cancellation from the council, e) drawing up a proposal for its internal regulations, submitting it to the federal council for approval. The CRMPB cannot judge the recent incident involving the doctor due to the absence of rules. However, it can propose amends to its internal code, enabling the CRMPB to prosecute doctors implicated in cases of domestic violence, even outside their professional practice, and prevent their registration, aligning with other professional bodies such as the Brazilian Bar Association (OAB), the Public Prosecutor’s Office, the judiciary, and the police.

Meaning that CRMPB, you can do more!

Priscila Werton is a Brazilian physician pursuing a Human Rights Master’s at the University of Manitoba.

You can find her on Instagram: @Priscilawerton

Links of interest:

Links of interest:

https://crmpb.org.br/institucional-2/#

https://crmpb.org.br/institucional-2/missao_visao_e_valores/

https://cem.cfm.org.br/#NovoCodigo

https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2023/09/17/mulher-agredida-por-medico-de-joao-pessoa-explica-por-que-nao-denunciou-violencia-se-eu-reagisse-eu-apanhava-mais.ghtml

https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2024/02/01/crm-pb-arquiva-sindicancia-contra-medico-flagrado-agredindo-mulher-em-elevador-em-joao-pessoa.ghtml

https://www.instagram.com/reel/C20EH9ZO-lY/?utm_source=ig_web_copy_link

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3268.htm

TV News:

Band: https://www.youtube.com/watch?v=8uyLpDAVXaI&pp=ygUjZmFudMOhc3RpY28gbcOpZGljbyBhZ3JpZGUgcGFyYcOtYmE%3D

SBT: https://www.youtube.com/watch?v=Px_JVlCj7xI&pp=ygUjZmFudMOhc3RpY28gbcOpZGljbyBhZ3JpZGUgcGFyYcOtYmE%3D

Globo: https://globoplay.globo.com/v/11954214/

https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2021/05/02/em-media-10-mulheres-sao-vitimas-de-violencia-domestica-por-dia-na-paraiba.ghtml

https://www.brasildefatopb.com.br/2023/09/13/dados-do-tjpb-revelam-que-entre-janeiro-e-agosto-10-399-vitimas-de-violencia-domestica-pediram-medidas-protetivas-ao-estado

https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2023/03/03/brasil-esta-diante-de-um-aumento-de-violencia-contra-a-mulher-diz-pesquisadora.htm