O déficit público no Brasil é algo orgânico, se arrasta ao longo de décadas, talvez séculos, e que se administra irresponsavelmente sacrificando os investimentos estatais nas mais diversas áreas da esfera pública. É preciso que falemos desse assunto com isenção, mas sem sermos omissos. Entendendo um pouco dos vícios desse sistema, não se tem como ser contra os pontos de uma nova reforma na Previdência, por exemplo, em que se busque corrigir distorções e combater privilégios no nosso injusto sistema previdenciário, considerado o maior programa de transferência de renda dos pobres para ricos, sem paralelo em todo o mundo. E, combater os privilégios que este regime patrocina, significa buscar diminuir o déficit público como um todo.
Os cerca de 1 milhão de inativos do setor público federal correspondem a 3% do total de inativos da CLT, mas respondem por 40% do custo total do INSS com pensões, que totalizou quase 350 bilhões de reais em 2022. O teto para os aposentados do INSS no setor privado é de pouco mais de R$ 6.200,00 (mas a média é de 1.700 reais, apenas), enquanto no regime público, para quem assumiu antes de 2013, não existe um teto. As aposentadorias são integrais e isso explica a grande distorção entre aposentados desses dois regimes previdenciários. No setor público existem mais de 20 mil aposentadorias acima de 50 mil reais, recebidas por quem não contribuiu na mesma proporção. Cargos e funções comissionadas, até algum tempo atrás, quando acumulados nos anos imediatamente anterior ao afastamento do servidor, eram integralmente vinculados à aposentadoria. Esses privilegiados hoje chegam a receber entre 50 e 120 mil reais por mês do INSS. Mesmo dentro do regime de previdência dos servidores públicos são enormes as disparidades. Os aposentados do Legislativo e Judiciário Federais recebem, em média, 3 vezes mais que a média recebida pelos aposentados do Poder Executivo.
O rombo da Previdência dos militares das forças armadas somado ao da Previdência dos servidores federais passa de 100 bilhões de reais/ano. O valor médio das aposentadorias nesses dois regimes é de cerca de 13 mil reais/mês por aposentado e atende cerca de 2 milhões de pessoas. Muito acima da média do regime geral do setor privado (CLT) que é de cerca de 1,7 mil reais/mês, cujo regime também é deficitário em 250 bilhões de reais mas, ao menos, atende 25 milhões de pessoas. No total, incluindo a previdência de estados e municípios, o déficit total na Previdência chega próximo de 400 bilhões, consumindo cerca de 14% do orçamento da União para cobrir a diferença entre arrecadação e o total das pensões. Se individualizarmos a responsabilidade com o déficit teremos os aposentados das forças armadas e do serviço público federal como os maiores onerantes (déficit per capita) do sistema.
Quando da última reforma em 2019, prevaleceu o corporativismo e pouco se avançou no sentido de se ter uma Previdência mais justa e sustentável. Agora já se fala numa nova reforma até o final da década que, com certeza desgastará quem estiver no governo. Esse comprometimento de 14% do orçamento tem reduzido o investimento público nas áreas de saneamento básico, por exemplo, em mais de 80% ao longo das últimas 4 décadas. O déficit da Previdência é o maior responsável pelo aumento da dívida pública como um todo, resultado da condescendência oficial com uma casta de privilegiados. A constituinte de 1988, ao dar autonomia administrativa, com liberdade orçamentária para os poderes legislativo e judiciário, que nada arrecadam, só consagrou a irresponsabilidade fiscal. Para agravar, instituiu a paridade salarial para o topo dos chefes dos três poderes. Ficou fácil. O poder judiciário aprova um aumento para si, o legislativo aprova e já reivindica a paridade, e lá vem o efeito cascata para as assembleias legislativas e câmaras de vereadores. A grande massa do setor privado, que é quem produz, fica com uma merreca de aposentadoria.
A Previdência não é o único sistema a concorrer para o Déficit Público, mas é o item que mais compromete as contas públicas depois do pagamento de juros e cujo acúmulo já responde por mais de 90% da dívida pública total do país que, por sua vez, já corresponde a 75% do nosso PIB. O comprometimento cada vez maior de parte da receita da União para cobrir o déficit geral e pagar juros da dívida, diminui o investimento público em outras áreas. A Previdência não colapsa porque é “salva” com esse dinheiro. O colapso, como bem sabemos, se revela na (in)segurança pública, no precário saneamento básico, no sistema de saúde deficiente e no sucateamento de escolas e hospitais.
Governo nenhum tem o direito de imputar ao povo uma dívida que não é deste, mas pela forma que é estruturada a máquina pública e sua elite, a conta acaba sendo paga pela população menos favorecida na forma de baixa qualidade de vida e precariedade de serviços essenciais. Enquanto isso, a elite dirigente, excessivamente política e pouco pragmática, vai penhorando a seguridade social dos futuros trabalhadores e servidores, mantendo e não combatendo os privilégios do presente. O setor público precisa ser melhor gerido e isso inclui uma reforma previdenciária e administrativa. Ser contra isso, seja atendendo interesses de uma cultura corporativista, seja atendendo conveniências políticas inconsequentes, é ignorar a realidade e a razão.
Dermival Moreira
É bancário aposentado, com Licenciatura em Geografia na UFPE e é autor de “Identidade e Realidade – artigos e crônicas”.