Toda criança, em qualquer contexto sócio, econômico ou cultural, busca os espaços, nem que seja só na imaginação, onde aconteçam a magia da vida. A vida e a infância dialogam com simplicidade, sem problematizações, elaborações teóricas e os preconceitos que vão sendo construídos no desenrolar dos anos formando a pessoa adulta que carrega o peso do que lhe é imposto do meio externo. Ganha em tempo de vida quem consegue manter a criança que foi em algum lugar de seu. Seja seus pensamentos, sua alma, ou sua saída de emergência.

Quando criança, com seis ou sete anos (de anos em números não lembro exatamente porque nunca faço contas do que é vivido), eu costumava me enfiar na velha garagem da casa de um tio-avô. Aquelas garagens de filmes americanos que fazem parte da programação de TVs nas tardes “morrentas” de algumas pessoas. Pois bem, enquanto minha mãe conversava com minha tia nas tardes que eram de cafés e conversas eu ia para a minha aventura particular na garagem, garimpar tesouros. Encontrava brinquedos bem antigos que foram dos primos de minha mãe, e ficava por lá esquecida, descansando dos adultos. Numa dessas buscas encontrei um livro de histórias. Era o livro “Histórias da Carochinha”, assim mesmo com esse título. O primeiro livro de histórias infantis lançado no Brasil. A capa um deslumbramento para os meus olhos arregalados de aventureira na selva da garagem – colorida, cheia de bichinhos que faziam parte daquele mundo em papel. As páginas cartonadas e com um tipo de verniz. Foi o meu primeiro encontro com um livro. Impactante, apaixonante. Eu ali uma quase Alice, entrei naquele livro para sempre. E em todas as tardes de cafés e conversas de minha mãe e minha tia, lá ia eu feliz, de coração aberto para aquelas páginas de minhas histórias. E nas mudanças do tempo, hoje trago o livro guardado em mim.

Depois de conhecer as histórias da carochinha, aconteceram os encontros com Narizinho, Pedrinho, Dona Benta e o Visconde de Sabugosa – as maravilhosas Reinações de Narizinho, do sobrancelhudo Monteiro Lobato (atualmente problematizado, questionado, “cancelado”). Só não vou descrever a experiência dessas leituras porque seria preciso escrever uma série de colunas. E aí, sim, eu já lia um pouco mais. A magia de ser transportada para um sítio encantado onde aconteciam mil aventuras, o exato momento de ser levada pelos personagens para outro mundo e o corte de voltar a realidade, só sabe quem de minha geração leu aquelas histórias.

Na sequência, ou talvez ao mesmo tempo, vieram para mim as histórias em quadrinhos e os desenhos animados do Hanna Barbera. E enfim aconteceu o momento importante de conhecer o cinema, indo na companhia de minha mãe e de meus irmãos assistir ao Branca de Neve e os sete anões. Só muito tempo depois entendi que os três irmãos foram juntos não pelo filme, mas para assistirem a esse segundo grande encontro de minha vida: eu e a telona do Cine Babilônia. Ainda tenho em uma das gavetas mais importantes de minhas memórias o momento em que os personagens que eu via no livrinho apareceram em tamanho gigante. Lembro das batidas do meu coração, batendo junto com o de minha mãe porque na primeira cena já me agarrei a ela, talvez por medo de ser levada por tamanho deslumbramento.

Tal qual Fernando Brant com o menino moleque que morava em seu coração, e o passado que havia em seu presente, eu não deixei ir embora essa menina – quem sabe dessa canção, também deve saber traduzir em sentimentos o que estou dizendo. E me atrevo a afirmar que quem perdeu completamente a magia da infância para ceder espaço a recomendada e insana sisudez de pessoas maduras já está mais para o lado de lá da vida.

E então, continuando aqui a história sobre encontros mágicos, entre esses, teve um dia em que a criança tomou conta dessa mulher adulta, foi o primeiro dia em que assisti a um espetáculo da Companhia de Teatro de Bonecos Boca de Cena. Quando o Coelho Banzé apareceu – o personagem mais conhecido e um tipo mestre de falta total de cerimônias do grupo, eu senti a mesma emoção do primeiro livro de histórias infantil – o da carochinha, o mesmo impacto de quando vi os sete anões gigantes na telona do cinema. Imediatamente me enchi de curiosidade sobre o trabalho do casal Artur Leonardo e Amanda Viana. Acho que o Coelho Banzé, acabou sendo o intermediário de uma amizade e parceria que se fez presente a partir daquele dia.

A Cia Boca de Cena tem um trabalho de grande importância, e feito de romper barreiras, obstáculos e todas as dificuldades que quem lida com arte e cultura conhece bem. Movidos pelo amor a arte, pelo respeito a cultura popular, os integrantes do grupo – juntos a Amanda e Artur, realizam um trabalho incessante de pesquisa, formação e produção.

Responsáveis pela pesquisa sobre o teatro de bonecos popular da Paraíba, a Cia Boca de Cena busca dar visibilidade aos mestres bonequeiros, a pesquisa resultou no “Catálogo do Babau da Paraíba”, publicado pela editora A União em 2021 – uma publicação que é um importante banco de dados sobre a existência e a resistência do Babau, onde nos mostra o trabalho de muitos mestres esquecidos em suas localidades e distantes da cena cultural. Só isso já bastava para que a Cia Boca de Cena tivesse todo respeito e apoios que merece, pelo profissionalismo e humanidade que imprimem em suas ações.

Mas quem vive da criação, e da graça de dar vida em cena a esses seres feitos de tecidos, sucatas e tintas, nunca para de inventar. O mais novo trabalho é a encantadora Dona Mariô, uma bonequinha bem miudinha e que a gente assiste a sua cena olhando no interior de uma caixa de antiga câmera fotográfica conhecida por lambe-lambe. Nem dá para descrever como pode tanta beleza, delicadeza e arte caber no teatro de bonecos em miniatura.

Quando pensei que nada mais eles poderiam inventar, recebo uma ligação de Artur. A sede da companhia está em construção, e eles queriam uma sala emprestada para gravar vídeos sobre a novidade: Amanda agora tem um espetáculo solo de contação de histórias. Ter a minha casa escolhida para fazer essas gravações foi algo melhor que ganhar um prêmio. Muito melhor! Enquanto combinávamos horários e detalhes, a criança que fuçava histórias em uma velha garagem já veio a tona e tomou conta de mim. Durante as gravações fiquei ali entre o encantamento de menina que sonhava e a observação da produtora cultural, assistente social e educadora.

A arte de contar histórias não é fácil e traz uma enorme responsabilidade por trás da brincadeira. As histórias contadas e ouvidas fazem parte da formação de crianças de uma forma muito determinante. E, como não poderia deixar de ser, Amanda Viana conta as histórias de sua criação – todas com fortes características regionais, com graça, leveza, e ao mesmo tempo com a seriedade e compromisso de quem educa e de quem dialogando através de seus bonecos também aprende ao olhar nos olhos de quem se encanta. É uma troca mágica.

Acho que esses amigos já se acostumaram a me ver virando criança quando a Companhia está em cena. E eu sempre digo de minha sorte na vida de ser amiga da Arte.