Cangaço Novo é a nova série da Amazon em cartaz na plataforma Prime. O cangaço é o nosso faroeste caboclo, e que já nos rendeu filmes memoráveis como O Cangaceiro, de Lima Barreto, com diálogos criados por Rachel de Queiroz. Além desse componente de faroeste acrescenta-se uma pitada de drama romântico, o suficiente para arrebatar o primeiro prêmio de um filme brasileiro em Cannes, em 1953, e de lá para as telas do mundo, como o que aconteceu recentemente com Bacurau, de Kleber Mendonça e Juliano Dornelas, que também não deixa de ter um componente de cangaço na resistência do povo liderado por Lunga, personagem de Silvero Pereira. Foram muitas as conquistas de O Cangaceiro, entre elas tornar a canção Mulher Rendeira um patrimônio da cultura nacional, escrita por ninguém menos do que Lampião, ele próprio um ícone da cultura nacional, nem tanto pelas canções que tenha criado, mas pelo tanto de assassinato que tenha praticado.

E é justamente este o ponto que me pega e me intriga: Lampião é um herói nordestino e popular, uma figura mítica, um guerreiro, um justiceiro, o autor da canção que, de acordo com Câmara Cascudo, ele compôs para homenagear a avó, Dona Maria Jocosa Vieira Lopes (Tia Jacosa), que era rendeira. Apesar desta origem tão familiar, Mulher Rendeira virou um cântico de guerra, e segundo se conta, o ataque de Lampião a Mossoró, em 1927, teria sido feito com cerca de cinquenta homens cantando Mulher Rendeira. O ataque foi um fracasso, Lampião não conseguiu entrar na cidade que até hoje se orgulha de sua resistência ao facínora, mas a música é um sucesso.

E é disso que se trata, embora disso não se fale, quando se refere ao cangaço. Em geral, tratam o cangaço como a saga heroica de homens que à sua maneira resistiram aos desmandos dos coronéis e ao descaso das políticas nacionais, que jamais incluiu o povo em suas contas, sendo este desde sempre relegado à sua própria sorte. Cada um luta com a arma que tem. E a dos cangaceiros é o punhal, o fuzil, o achaque, a tortura, o estupro, o roubo, o assassinato. Vamos e venhamos, nada muito diferente das armas dos coronéis daqueles tempos e dos tempos modernos também. Cangaceiros sempre foram criminosos violentos. Eu vejo um secreto liame que liga o capitão Virgulino Ferreira da Silva ao coronel (por sua origem) capitão Jair Bolsonaro, e o que vejo em ambos é o crime como moto perpetuo de ação, muito embora eu também percebo muito mais honra na prática do mal em Lampião, que ao menos no embate da luta expunha a sua vida. Os tempos mudaram. E o coronelzinho que ocupou o Planalto é apenas um reles e covarde ladrãozinho por mais de trinta anos protegido pelo Estado, que até então lhe concedera imunidade parlamentar.

Ao contrário do que se possa pensar, não é o bem, mas o mal que move a cultura, e ao fazê-lo pode inclusive mover o seu status de algo mau para algo bom. Veja-se, por exemplo, os cowboys americanos que tantos filmes renderam e rendem e disseminam uma imagem de potência e justiça à moda americana. Apesar de John Ford, com os seus filmes icônicos como Rastros de Ódio ou No Tempo das Diligências, o cowboy americano é um invasor de território, um assassino potencial e um genocida federal. Entretanto, a cultura do entretenimento o fez herói.

É nesse contexto que eu penso que vai se inserir uma série como Cangaço Novo, que atualiza a ação dos lendários cangaceiros, agora ferozes assaltantes de banco que infestam as cidadezinhas desprotegidas pelo interior do nordeste. O que é um fato atual. Cangaço Novo vem somar-se a uma onda de nordestinidade que invade a cultura brasileira, atualizando as antigas questões sociais e trazendo novos atores para o centro da tela. Não havia um único ator/atriz nordestino em O Cangaceiro (até onde eu saiba). Em Cangaço Novo, ao contrário, quase todos o são, e isto confere autenticidade às cenas, e vigor nas interpretações de quem desde sempre pisou o chão consagrado pela literatura, sagrado por suas próprias vivências, duro e seco como as interpretações de Alice Carvalho e seu bando de cangaceiros. São muitas as virtudes dessa série, a começar pelo roteiro, escrito por Fernando Garrido, Mariana Bardan, Eduardo Melo, Erez Milgrom e Viviane Pistache, o qual conta a história de um ex-bancário e ex-policial (Allan Souza Lima), que ao descobrir que tinha uma herança deixada por seu pai biológico vai à fictícia cidade de Cratará, no sertão cearense, em busca do dinheiro que salvará a vida do seu pai adotivo (Ricardo Blat). Entretanto, mais do que o dinheiro, a herança incluía, à sua revelia, um retorno do filho do velho cangaceiro que assume a posição deixada pelo pai. Ubaldo é um anti-herói que chega do nada para profissionalizar a atividade criminosa no sertão. Com uma câmera inquieta e cortes rápidos na montagem, a fotografia (Alexandre Ermel) é um dos pontos altos da série dirigida por Aly Muritiba.

Mas o que mais me chama a atenção é assistir a um elenco de nordestinos segurando o touro pelos chifres. E este me parece que é um momento muito especial para os atores, que, ao contrário dos músicos e da música nordestina, são tão pouco conhecidos Brasil à fora. Entretanto, desde quando Allan Fiterman abriu espaço para dezenas de atores do nordeste, sendo esta, a meu ver, uma das causas do imenso sucesso de Mar do Sertão, a novela que ele dirigiu recentemente pela Globo, viu-se o quanto há de original nas interpretações dos atores do nordeste. Sim, essa potência se afirma mais uma vez em Cangaço Novo.