
Há um novo estilo de ficcionalidade audiovisual difícil de se classificar. E para explicá-lo, convém se resgatar o legado de glória das grandes telenovelas globais (anos 70/80): como as obras de Gilberto Braga, que fez escola, com títulos como Dancin’ Days (1979), Água Viva (1980) e Vale Tudo (1988). Considerando os grandes fracassos e o baixo índice de audiência das telenovelas recentes, as séries brasileiras (no Globo Play e alhures) sobem no IBOPE na medida em que resgatam as imagens de luxo, glamour, beleza e seduzem todos os fissurados na vida dos ricos, famosos e celebridades (uma marca mundial no cerne das ficções seriadas).
Elas são a “cara da riqueza” e encarnam tudo aquilo que atraiu a atenção dos telespectadores pobres, de classe média e remediados – no país dos abismos profundos e enormes disparidades socioeconômicas.
Poderíamos assinalar nessa direção a série Verdades Secretas I (2015) e sua sequência II (2021), que foca o mundo fashion (o universo da moda), com estonteantes modelos e celebridades. Extrapola o padrão Globo de Qualidade (no que concerne aos “bons costumes” dos “homens de bem” e da “sagrada família brasileira”), escapam do contexto moral da narrativa padrão; logo, não são lá muito cristãs: são “originais”, atrevidas, exageradas e afirmam uma ousada modalidade de ficção urbana pós-moderna.
A Rede Globo primeiro testa a exibição da orgia no canal fechado: porque quem paga tem o direito de espiar e cobiçar a vida dos afortunados, os belos corpos, o delírio dos “anormais”, a vida “fora da casinha”. Os televidentes adoram exercer o olhar do voyeur, gozar as delícias das “verdades secretas” alheias e escarafunchar a privacidade dos outros.
No jogo frenético de identificação entre o telespectador com o “sujeito na tela”, há deleites, projeções e espelhos que estimulam a autoestima, o reconhecimento do self na imagem do outro; a Globo é boa nisso. Mas ao mesmo tempo reforçam os traços narcísicos, egóicos e patologicamente individualistas. Mas disso a Globo não quer saber, prefere capitalizar o “princípio do prazer”, o gozo sem fim dos clientes-consumidores-assinantes.
O telespectador se regozija com os ambientes paradisíacos, a vida dos ricos e o hedonismo das festas e cenas extasiantes. E pode esticar o fio de acordo com a audiência dos canais fechados; mas nos canais abertos terá que usar o freio sob pena da “família nuclear” dar um zap e mudar de canal.
Se der certo a exibição da orgia no GloboPlay, usando alguns filtros, pode veicular o produto e ganhar boa audiência no canal aberto.
Dentre as grandes mutações da teledramaturgia nacional distribuída em modo streaming, as narrativas são mais curtas que as clássicas telenovelas, apresentadas em pacotes de poucos capítulos, geralmente em várias temporadas (como as séries norte-americanas), gerando o hábito das “maratonas”, o que tem agradado ao público mais ávido, compulsivo, disposto a ver tudo de uma só vez.
Beleza Fatal é uma série para lá de complexa. Primeiramente, saiu nos canais MAX/HBO, esbanjando criatividade, invenção e atualização da linguagem das séries brasileiras no mercado internacional do audiovisual. Depois foi lançada no canal de TV aberta Bandeirantes. Tem seus altos e baixos, mas sobretudo consiste numa narrativa que botou no chinelo todas as tramas ficcionais exibidas no canal aberto da TV Globo.
Camila Pitanga, no papel da protagonista-vilã Lola rouba todas as cenas, interpretando uma personagem similar à Bebel, na telenovela Paraíso Tropical (2007). Esta será uma história de vingança, glamour e sexy-appeal.
Beleza fatal mira fundo nos abismos socioeconômicos, critica o narcisismo, egoísmo, crueldade e alpinismo social.
Relembra o tema do filme Substância: a obsessão pela beleza plástica e aparência de eterna juventude. Parece novela, mas não é. Há o núcleo dos grã finos, fazenda chic com piscina, helicópteros, manjares de luxo, e muita malvadeza, é claro. E há o núcleo popular, com rodas de samba, desenhos da solidariedade verdadeira, lágrimas e gargalhadas. Há overdoses clínicas, tomadas nos hospitais e merchandising de (quase) transplante cardíaco. Mas é queer total.
Camila Pitanga rouba a cena (a periguete Bebel, maravilhosa, está de volta para alegria da galera, dessa vez um pouco assassina), Caio Blat dá show como um personagem de alta complexidade, Marcelo Serrado está impagável como cirurgião bandido, o senior Herson Capri está irrepreensível (fazendo Átila, um vilão racista e gay enrustido), Giovanna Antonelli brilha no nicho popular, fazendo “cambalachos” com o marido (Lino / Augusto Madeira) e Camila Queiroz retorna com nova chance de mostrar que é atriz. Destaque-se o papel da transsexual Andréa (Kiara Felippe), como professora de dança discriminada por Átila, que cresce bastante em sua interpretação.
A série saiu em pacotes num total de 40 capítulos. Quem viu no canal fechado pode maratonar (assistindo tudo de uma vez) essa espécie de drama policial que causou furor na mídia e nas redes sociais. Quem viu na TV Bandeirantes vai ver uma outra história: atravessada por comerciais, distribuída semanalmente, com alguns filtros (imperceptíveis). Hoje, o público parece se impacientar com as narrativas longas nos canais abertos.
Beleza Fatal: herdeira dos “dramaturgos malditos”
A narrativa teledramática historicamente tem sido estruturada sobre alguns temas básicos que caracterizaram sua duração ao longo de décadas.
Há um eixo temático principal, em que o herói encontra a mocinha e no meio do caminho haverá situações (atrozes) e personagens (vilões) que farão dessa ‘paixão amorosa’ um verdadeiro inferno.
Há os eixos secundários, fazendo uma composição dos núcleos formados pelos ricos e os pobres: o vocabulário, o vestuário, a moradia, os hábitos e os valores desses dois segmentos sociais vão mobilizar a história.
Geralmente a família está no centro da cena e em torno desta se agregarão vizinho, familiares, os “sem lar”, lugar-comum atravessado por encontros-desencontros, crises, e pequenos surtos de felicidade.
Na narrativa tradicional (Glória Magadan e Ivany Ribeiro) tudo isso era muito bem matizado e a moral da história era orientada para os valores nobres, corretos, altivos, fazendo a cabeça do público para seguir os rumos de uma vida honesta, “direitinha”, bem comportada.
Então vieram “autores malditos” como Gilberto Braga (Vale Tudo), Aguinaldo Silva (A Indomada) e João Emanuel Carneiro (Avenida Brasil), entre outros, que viraram do avesso os cânones da teledramaturgia. Todos leitores do Mestre Nelson Rodrigues, enfrentaram a censura, as pressões internas, as normas da ‘Tradição, Família e Propriedade” e mostraram uma outra construção dos conceitos da vida afetiva, familiar e amorosa.
Beleza Fatal absorve tudo isso, intensifica a complexidade das relações, carrega nas tintas e exibe “a parte maldita”, o “indizível”, o lado “obsceno” (e curioso) da vida privada dos ricos. Realiza uma atração fatal entre a narrativa (pós-moderna) e os telespectadores imersivos na pósTV.
Todavia é mister destacar o protagonismo dos malvados, a presença do mal, da vilania, dos “afetos danados” na espessura de Beleza Fatal. Tornou-se banal (pela própria Globo) a expressão “os vilões que nós amamos odiar”. Restaria saber o tamanho, duração e intensidade dessa identificação dos telespectadores com as imagens, gestos e atitudes dos vilões.
Victor Hugo teceu a representação dos malvados, como os Thénardiers (em Os Miseráveis), Dostoievski vasculhou a mente complexa do criminoso Raskolnikov (Crime e Castigo) e mais recentemente Rubem Fonseca fez a psicobiografia de um assassino (O Cobrador). Sem ser moralistas (ou seja, sem dar receita para como as pessoas devem ser), vão fundo na psiquê da personalidade patológica, desvendam os mistérios da alma humana e pela maneira como revelam tudo isso causam um tipo de catarse na mente dos leitores. Na medida em que nos reconhecemos nos perfis dos malvados – de algum modo – nos purgamos e exorcizamos a parte do mal que nos habita.
Mas a transparência do mal na ficção televisual (pós)moderna parece ser de outra natureza. Como uma espécie de mimesis moralista às avessas, os personagens da ficção buscam algo além do poder e da riqueza, atropelando todos que se mostram como obstáculos aos seus desejos e objetivos. Exacerbação da imagem, aparência, vontade de evidência e forte desejo de reconhecimento são algumas das suas principais características.
Os homens e mulheres imersos na sociedade de consumo, à sombra do “império da selfie” e ávidos pela alta pontuação (lucrativa) de suas postagens, lives e selfies se norteiam por outras mitologias. Seu universo (habitat, palavras, gostos, ídolos e valores) – na era da internet – é efêmero, volátil, transitório, mas este não é o maior problema da psicopatologia das massas (zumbi)midiatizadas. A construção que fazem de si – sem passado e sem futuro – giram em torno das embalagens que vestem, acreditando ser este o caminho para encontrar o sentido da vida. E esta condição existencial é – inconscientemente – o canal que leva à frustração, depressão, angústia, pulsão de morte e “instinto” de destruição.
Além do bem e do mal (?): paradoxos da ficção contemporânea
A protagonista de Lola (Camila Pitanga), em Beleza Fatal, encarna o arquétipo da vilã (pós)moderna: ela é sintoma da farmacopéia desvairada, depende de uma clientela viciada e seu êxito advém da midiatização radical.
Lola penetra no seio de uma família rica, fazendo mil maldades para adquirir vantagens. (É verdade que essa família já se encontra em avançado processo de decomposição; em sua maioria são criminosos).
Mas aí, Lola vai deitar e rolar na lama dos milionários. O que não deixa de ser interessante pela maneira como debocha escrachadamente da estrutura tóxica e perversa da “família mafiosa”.
Entretanto, sua linguagem é produzida para “lacrar” e “lucrar”, seu modo de ser, falar e agir concentra o suprassumo da artificialidade, sua aparência parece uma senha de acesso à beleza, saúde e longevidade. Sua performance consiste numa atração fatal para milhões de mulheres que se regozijam no espetáculo de sua aparição exuberante, apoteótica e plástica arrebatadora. Pena que sua substância seja tóxica (como aquela do cinema), e seus afetos sejam tão nocivos e letais, como uma “erva venenosa”.
Todavia a série ficará no imaginário popular pelo glamour, deboche e criatividade. Lola atrai a audiência da população LGBTQIA+ que vê nela a sua expressão mais acabada: o brilho do espetáculo, atração pelos holofotes, o desejo de celebridade é uma herança de Hollywood que a Rede Globo bem soube aproveitar.
A imagem da “femme fatale”, que os gays aprenderam a hiperbolizar na figura da “bicha-travesti”, nos teatros, nos shows transformistas e na cena noturna do show business, mostra-se aqui exponencialmente: expõe a parte frívola, dramática e extasiante que brota dos subterrâneos da vida social. E sem diabolizar, convém se reconhecer o valor dos ditos “anormais”, a cultura queer, o reino dos outsiders, talvez seja esse o segredo de Beleza Fatal.

Claudio Paiva
Professor Titular - Departamento de Comunicação - UFPB. Mestrado e doutorado em Sciences Sociales - Universite de Paris V (Rene Descartes).