
O filme Substância (Coralie Fargeat, 2024; com Demi Moore) parece um filme perverso pela forma como seduz o público, colocando Demi Moore como a protagonista. Lembremos, Moore ascendeu ao estrelato, aos 28 anos, com o melodrama romântico sobrenatural, Ghost – Do outro lado da vida (1990), gênero mix suspense-comédia que traz um fantasma (encarnado pelo sexy-symbol Patrick Swayze), que protege a amada do mal, após ter sido assassinado a mando do melhor amigo. O filme abusa de efeitos especiais, conferindo um espectro de magia e tecnoespiritualidade, que paradoxalmente, encanta a plateia materialista e consumista dos anos 90.
Todavia, em Ghost, uma imagem marcante é fixada na memória do público, com enorme sensualidade, numa das cenas mais eróticas da história do cinema: Molly Jensen (Moore), jovem, bela e fisicamente excitada está sentada no colo do parceiro Sam (Swayze), e este transpira sem camisa, enquanto ela modela um vaso de argila que gira frenético num torno, simbolizando o movimento febril de um ato sexual, ao som da melhor trilha sonora de motel “Unchained melody”.

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Para convencer a namorada da sua vera presença, o espírito de Sam se apossa do corpo da vidente Oda Mae Brown (na pele da comediante negra e assumidamente lésbica, Whoppi Goldberg – Oscar de melhor atriz coadjuvante, em1991) e usando o corpo da vidente, o fantasma lhe dá um longo e prolongado beijo, como se esta fosse Molly.
Em seguida, Demi Moore fez Proposta Indecente (Adrien Lyne, 1993, autor de 9 ½ semanas de amor). Ela encarna Diana Murphy, casada com David (Woody Harrelson), mas aceita a proposta de ir para cama com o ricaço John Gage (Robert Redford) em troca de um milhão de dólares. Em 1996, aos 34 anos, Moore estrelou o filme Striptease (Andrew Bergman), como a bombada stripper Erin Grant, e então ganhou o cachê recorde em Hollywood (12,5 milhões dólares), por “um dos piores filmes da história”.
A atriz-produtora-diretora-modelo Demi Moore entrou em declínio após Striptease, mas – aos 62 anos – teve um retorno surpreendente com o filme A Substância (Coralie Fargeat, 2024), em que faz uma celebridade (de 50 anos) em decadência e passa usar uma substância química que promete rejuvenescimento, mas em verdade causa efeitos corporais aterrorizantes.

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O primeiro golpe no “espelho da veterana narcisista” ocorre quando a protagonista, Elisabeth Sparkle, distrai-se, mirando sua própria imagem em um outdoor e sofre grave acidente. Na clínica, oferecem-lhe informação sobre a substância que lhe faria mais jovem, mais bonita, mais perfeita. Ela hesita em princípio, mas depois resolve se injetar. Então, através de uma fenda aberta nas suas costas surge (Sue) uma versão mais jovem de Elisabeth.
Com o passar do tempo, Sue irradia beleza, glamour e sucesso, enquanto Elisabeth começa a minguar. Mas ambas precisam constantemente se reinjetar para reafirmar o êxito da estranha simbiose. Pari passu, começam a se odiar. E Sue, deslumbrada, cada vez mais extrai a essência vital de Elisabeth, que passa a se deteriorar com uma versão grotesca do “retrato de Dorian Gray”. A disputa se radicaliza ao ponto de Sue matar violentamente Elisabeth, mas a “cópia” não pode sobreviver sem a seiva da “matriz”. Então, Sue é convidada para estrelar o programa natalino na TV; está decrépita, com os dentes, orelhas e órgãos caindo de podres, mas usando máscara resolve se apresentar ao público. Quando a máscara cai em cena, o público aterrorizado com a monstruosidade evidente de Sue a decapita e ela jorra sangue sobre a platéia (como uma mimese piorada do filme “Carrie, a estranha”). E daí surge o efeito especial do gênero sci-fiction“terror-corporal”: pedaços do seu corpo se arrastam até a rua, como restos de um zumbi, até a sua estrela que jaz na “Calçada da Fama de Hollywood”, mas aí amanhece e surge uma máquina de lavar a rua que limpa os “detritos pós-orgânicos” da sarjeta.
Não haveria aqui espaço para uma análise critica mais profunda; entretanto, caberia indicarmos alguns elementos à guisa de interpretação.
A primeira ideia que nos ocorre a partir da narrativa audiovisual é a síndrome do narcisismo exponencializado pelos dispositivos tecnomidiáticos, causando neurose, depressão e melancolia; isto é demonstrado com maestria na conhecida obra de Muniz Sodré, Máquina de Narciso, Televisão, indivíduo e poder no Brasil (1984).
A segunda dimensão significativa que sobressai do filme é algo que chamaríamos de “complexo de Dorian Gray”, remontando à obra de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray (1889), conforme inferimos acima e diz respeito ao medo do envelhecimento e da morte, o culto exacerbado do corpo e a ânsia pela longevidade. Aqui o narcisismo é o contrário da autoestima.
O terceiro aspecto que chama a atenção remete ao tema do duplo, do outro como extensão de si mesmo (ou um tipo paradoxal de “exotismo interior”), uma estranha alteridade (pervertida) que se volta contra o sujeito. No livro A Sociedade de Consumo (Jean Baudrilllard, 1970), o autor relembra o filme mudo expressionista alemão “O Estudante de Praga”, em que um jovem refaz o fáustico pacto com o diabo e este lhe promete tudo o que ele desejar, em troca da sua imagem, e ele topa. Mas daí, a imagem usurpa o lugar do original, apronta horrores na esfera pública, chegando a cometer crimes e caberá ao estudante em carne e osso assumir a responsabilidade pelos danos cometidos pelo seu espectro solto nas ruas. Assim, Baudrillard faz uma crítica corrosiva aos atores sociais que trocaram a sua imagem pela publicização, o êxtase da vontade de vidência e evidência, numa vida social sem essência, sem substância, sem autonomia nem liberdade, mas regida apenas por simulações e simulacros gerados pelo sistema turbocapitalista.

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Ocorre-nos ainda repensar a condição humana na época da farmacologia que entope os corpos de substâncias tóxicas, algo enfaticamente estimulado pela mídia, pela publicidade e pelos próprios valores e normas que regem a (pós)modernidade líquida, destruindo o vigor, a vitalidade, a naturalidade das vivências individuais, corporais, ontológicas. E por fim, a película revela os sintomas de uma cultura hipermaterialista que aposta nos investimentos farmacológico, clínico, laboratorial. Isto é, um conjunto de estratégias da razão instrumental, do sistema capitalista, machista, patriarcal, heteronormativo que estabelece as regras, no que respeita às experiências de uso do corpo, à subjetividade dos homens e mulheres, em detrimento das suas diferentes orientações. Há nesse contexto um tipo de domesticação dos costumes (a biopolítica de Foucault) que enquadra e controla rigorosamente – de maneira moralista – as especificidades do sensual, do erótico e do pornográfico. Estes e outros aspectos da “fabricação forçada das identidades sexuais” aparecem na obra Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica, do filósofo transgênero, Paul Preciado (2018).
Em síntese, o controverso filme A Substância consiste numa teia complexa que dá margem a várias (re)significações e interpretações. No momento, diríamos que serviria como estímulo para repensarmos os rumos da “sociedade intoxicada”, em que os corpos de homens e mulheres têm sido atravessados por estratégias econômicas, políticas, culturais, clínicas, farmacológicas e laboratoriais que destroem o “vivo do sujeito” em seus matizes existenciais, ontológicos e autenticamente livres e desejantes.

Claudio Paiva
Professor Titular - Departamento de Comunicação - UFPB. Mestrado e doutorado em Sciences Sociales - Universite de Paris V (Rene Descartes).