Faço parte do Clube do Conto da Paraíba. Não sou das clubistas mais assíduas, e já fui a alguns encontros só para ouvir os colegas que sabem lidar com uma boa narrativa. Mas, de uns tempos pra cá, também tenho me arriscado a levar as minhas tentativas de contista para o grupo. No Clube a coisa funciona assim: ao final de cada encontro onde cada um (a) faz a leitura de seu conto, ou apenas escuta e opina, segue a escolha do tema para o próximo. O tema geralmente é uma palavra e, quem quer se virar em contista, que se vire e crie a sua narrativa. O Clube é uma oficina de literatura, e das mais antigas, com a diferença de que reúne pessoas em volta de uma mesa de café e guloseimas, sem regras, sem pressão, mas tem ata. Ah, tem! E cada ata acaba sendo um texto literário, como não? Geralmente – leia-se quase sempre, ao final dos encontros tem um núcleo que estende a reunião até à mesa de bar. Posso dizer que faço parte do Clube e do tal núcleo. Parece que a literatura gosta de mesas, seja dos cafés ou dos bares.
Então, trouxe para a minha salinha aqui no Diário de Vanguarda um desses contos que arrisquei, ou mais certo dizer em que quase me emaranhei. O tema desta feita foi “teia”.
Tricotando teias
Aquela casa grande ali na esquina guarda uma história que fez com que ninguém mais quisesse habitá-la. Desde a morte da última moradora nunca apareceu comprador, nem mesmo para derrubar e fazer um estacionamento ou mais uma farmácia. Ficou ali então, entregue ao tempo, os muros cobertos de musgos, os galhos ressecados onde antes foi um jardim, portões quebrados. Nem mesmo os cachorros vira-latas dormem em seu terraço. Preferem ficar atentos, de orelhas em pé, sob a luz do poste que mal ilumina aquelas paredes de um cinza desbotado.
A dona era uma velha senhora, nunca se soube ao certo de onde veio. Era de amigos nenhum. O que se sabia de sua vida fora contado há tempos por sua irmã, que ficava de conversa na padaria perto da praça, quando ia comprar o pão da tarde, ou quando ia à feira. Dizem que falava muito nesses momentos porque eram os únicos em que via outras pessoas e podia falar livremente. No resto do tempo cuidava da casa onde morava com a irmã viúva. Lavava, passava, cozinhava, cuidava do jardim, sempre em silêncio, porque a irmã não suportava conversas.
Viveram assim por vinte anos ou mais, as duas nessa casa hoje abandonada. Quando chegaram com a mudança, as vizinhas curiosas correram a buscar notícias de quem eram, de onde vinham. No caminhão, poucos móveis que nada adiantavam de informações. Um sofá, um fogão, uma mesa, duas camas, duas cadeiras de balanço, um narguilé – objeto estranho parecendo um ninho de cobras que dizem pertencia ao falecido. Pois o pouco que se ficou sabendo é que a mais velha havia sido casada com um libanês rico, proprietário não se sabe de que, lá para os lados do Sul. Morreu engasgado com um quibe quente. Uma morte muito esquisita, porém morto estava. Não tiveram filhos. A irmã mais nova contou um dia a uma vizinha que em tal casamento era impossível filhos. E logo se espalhou a história que até hoje se conta: a viúva – naquele tempo ainda jovem e recém casada, assustada com a nova vida, ao entrar na casa que lhe aguardava para ser a matriarca, cuidar de linhagem e tradição, e ter um filho por ano, resolveu assumir uma cadeira de balanço que colocou no terraço, e ali passava horas a rezar e tricotar algo que não era coisa nenhuma, nem lençol, nem manta, xale ou toalha. Era uma peça em linha preta, em formato redondo, que em anos a fio sendo tricotada já ocupava o chão de uma sala inteira.
Após a viuvez, chegando nessa casa onde morou até a morte, logo procurou o melhor lugar para a cadeira de balanço, de costas para o sol, em um canto da sala onde nunca entrou visita. Retomou o tricotar da peça redonda e estranha, da qual ninguém poderia suspeitar que finalidade teria. E ali, no fiar dos dias, foi assim o passar da vida pelas duas: uma trabalhando em silêncio, outra rolando entre os dedos envelhecidos contas já gastas de um terço de madeira, ou vagarosamente repetindo ponto a ponto o tricotar da imensa peça.
Nos últimos anos, a mais nova emudeceu e começou a passar dias e noites sentada no batente de entrada da casa, a olhar o céu. A casa ficou entregue à aranhas e baratas. Até que um dia foi vista por um senhor que ia passando por ali, muito morta e bem sentada, parecendo sorrir. Restou a outra, que continuou ali no mesmo canto por alguns dias. Não aceitava intromissão de vizinhos, não aceitava comida. A casa era então conhecida como a casa assombrada – daquelas que aparecem em quase todos os contos de terror.
Passaram-se os dias, outros acontecimentos ocuparam as ruas, e a vizinhança esqueceu da velha. Até que um curioso invadiu a casa e saiu a correr gritando alarmado a sua descoberta: em meio a sala havia uma aranha gigante, e de uma teia tão enorme e escura que ela estava ali presa, como se tivesse sido capturada, vítima de sua armadilha. Todos correram e entraram na casa, havia chegado o momento de descobrir os seus mistérios. Mas, o que viram foi a velha, morta, como sempre vestida de preto, emaranhada na peça que tricotou durante os seus dias não vividos.
Valeska Asfora
Escritora, Assistente Social, Mestre em políticas públicas, Educadora, Produtora Cultural. Autora do livro “Anayde Beiriz – a última confidência”(2022)