Acompanho a caminhada literária de Marília Arnaud desde que, inédita em livro, venceu o Prêmio Literário Violeta Formiga organizado pela AMPEP (hoje SINTEP) – Associação do Magistério Público do Estado da Paraíba. Tenho todos os seus livros e observo com alegria o crescimento do seu nome no cenário brasileiro. Estou ligado no que pensam leitores qualificados como Antônio Torres. É ele quem assina a orelha do seu último romance. Não por acaso sua obra “O livro dos afetos” (7Letras, 2005) venceu o prêmio Sundial House de Tradução Literária na Universidade de Columbia. Marília é uma escritora brasileira, da Paraíba e do mundo.
Para o autor de “Essa terra”, “Um cão uivando para a lua” e outros sucessos do Mundo Livro S/A, “Esboço em pedra e sonho” (Faria e Silva, 2024) mais uma vez coloca Marília entre os bambas da prosa brasileira contemporânea. Antônio Torres destaca em seu texto: “há o prazer do texto que nos leva da primeira frase ao ponto final sem pestanejar, seguindo a corrente rítmica de uma canção do tempo que vai e vem entre sonhos e pedras nos intrincados caminhos da protagonista da história”. Marília experimenta sem medo das imprecisões e oferece o movimento e a visualidade perfeita para que a leitura nos dê a dimensão exata de cada cena e os detalhes mínimos da sua rota de cenários.
Ler literatura contemporânea ou clássica é um aprendizado permanente, todavia. Ninguém lê duas vezes Guimarães Rosa ou Clarice Lispector da mesma forma. A leitura literária é um ato criativo que nos desafia também a perseguir as estratégias do autor ou autora na estruturação da narrativa. Neste caso, o risco de naufrágio é enorme. Não basta reconhecer que há um estilo definido e que essa é a verdadeira identidade de quem escreve. As amputações e formulações do tempo são quase sempre intuitivos. Isso se considerarmos o aspecto cognitivo da intuição como artefato criativo. Esses são alguns dos fatores que, penso eu, seduzem para a leitura de Esboço em pedra e sonho.
Existem instrumentos neste livro que só encontramos numa espécie de anatomia da linguagem. Algo que, provavelmente, vem de Roland Barthes quando diz: “eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz.” Diante de uma escrita refinada e veloz, onde não sobram nem faltam palavras, são os detalhes que acrescentam o inusitado no prazer da leitura. Toda beleza é feita de detalhes e toda beleza é simples. Complexa é a simplicidade. São essas algumas das lições de voo que encontramos no romance de Marília. Uma obra que confirma o prazer de amar a boa literatura brasileira. Especialmente a que não se ocupa com algumas dessas polêmicas de pouca bagagem.
Numa cena digna de um bom roteiro cinematográfico, atento ao rádio, um personagem pouco presta atenção no acontece ao seu redor. Sua tensão vem do noticiário. Diante da insistência da sua interlocutora ele dispara: “o presidente foi deposto.” Nada mais precisa ser dito para reconhecermos os tempos desafiadores em que a história da protagonista Romana de Maria se passa. As entrelinhas revelam que foi a tal “Marcha da Família” que ofereceu as condições objetivas para um golpe de estado. Portanto, tudo se passa num momento de uma ascensão social conservadora. Um achado assim, como se diz popularmente, é coisa de cinema.
Indiferente aos fatores conjunturais do mundo, Marília revela que a sua literatura se veste de gente, palavra, ficção e de realidades que se atritam. Seja pelas diferentes faces do medo, ou pela fragilidade humana na travessia das perversidades da vida real. O implacável medo do escuro que faz com que a personagem urine na cama, por exemplo. Ou nas máscaras da moralidade diante do pavor que nos oferece uma pegada psicanalítica. Sim, ela também fala do amor, da arte e das paisagens freudianas. Nesse território Marília manda muito bem em todos os seus livros, sem que este seja (mesmo sendo) um prumo definidor da sua literatura. Ela é muito ampla.
Vejo Romana de Maria como personagem construída a partir (ou mesmo dentro) das claustrofobias produzidas pelo cotidiano familiar. Com as pressões da normalidade e as inevitáveis garras do afeto que se revelam também em palavras, mas principalmente em atitudes. Afinal toda supressão de clausura é uma decisão afetiva. Cabe muito amor na implantação de cobogós para arejar o espaço e despetalar o medo. O livro “Esboço em pedra e sonho” é um verdadeiro baú de espantos. Carrega a elaboração de um artesanato literário furioso. Livre de impurezas. Como um alguidar de João Cabral de Melo Neto. Aliás, creio que toda boa literatura é a mais pura poesia.
Destaco ainda a elaboração de um cotidiano em que as coisas, os animais e as pessoas assumem a imposição da linguagem e a verve inventiva da autora. A exemplo da definição da cor de um vira-latas como “cor de casca de pão”. Marília é uma malabarista que baila sobre as diluições do popularesco na definição “cão caramelo”. Nos personagens, cria nomes incríveis, como Tonho Mefisto. Customizando a imagem incomum das coisas comuns, Marília prende o leitor ou a leitora página após página. Algo que nos provoca a inevitável angústia do ponto final. Afinal, o que viria depois?
Lembro que tempos atrás li um ensaio do Julio Cortázar em que ele dizia que o escritor não conhece os seus caminhos enquanto os está abrindo. Certamente não é diferente com Marilia. Ela faz do exercício da escrita um mergulho em águas profundas. Geralmente o sucesso de uma escrita que entra para a história de uma literatura, não se resume a um ou dois livros publicados. Claro, as exceções existem. Caso contrário não teríamos Augusto dos Anjos ou Raduan Nassar. O fato é que a boa literatura não se posiciona em podium, mas num horizonte capaz de capturar leitores para além do tempo presente. Me parece que é o caso de Marília.
Logicamente a citação do aspecto cinematográfico na prosa de Marília Arnaud trata de um risco que, certamente, poucos assumiriam. Entrar sem medo na medula de uma obra tão bem construída é um risco que somente os muito raros tentariam. O fato é que as cenas estão prontas. O cenário está montado e os diálogos são irretocáveis. Assisti poucos filmes baseados em obras literárias que pouparam o roteirista de um vexame. Um dos mais polêmicos foi Lolita, de Vladimir Nabokov, pois a protagonista não tinha idade (a atriz de 14 anos) para assistir o filme que protagonizou.
Saramago proibiu veementemente adaptações da sua obra, mas por fim, abriu exceção para “Ensaio sobre a cegueira” sabe-se lá o valor do risco. Umberto Eco parece que não teve problemas com a filmagem de O Nome da Rosa. O livro e o filme são idênticos. Portanto, senhores e senhoras produtores de áudio visual, tenham cuidado com “a engenhosidade na construção dos cenários e personagens” deste romance escrito com enorme talento. Tudo está pronto, mas um grande livro não merece um filme menor. Estamos diante de uma obra que precisaria seduzir por igual do elenco aos técnicos. Ao diretor caberia ser o maestro executando a Quinta Sinfonia de Gustav Mahler.
Lau Siqueira
Gaúcho de Jaguarão, mora em João Pessoa desde os anos 1980. Escritor, poeta e cronista, tem diversos livros publicados, participou de antologias e coletâneas. Ex-secretário Estadual de Cultura da Paraíba.