
Eu me lembro dos desenhos animados de Garparzinho que assistia na TV do vizinho, nos anos 70, quando criança na avenida D. Pedro II, sem medo, sem susto nem nada, era a maior diversão da garotada. Muito depois, na sessão coruja, ficava até altas horas vendo os filmes em preto-e-branco, de Drácula, com Christoph Lee e era um prazer inusitado ver as cenas de terror, algo bem diferente das fitas horrorosas como Freddy Krueger, Sexta-feira 13 e outras películas pavorosas do cinema, nos anos 80. O fato é que logo cedo nosso imaginário foi permeado pelas histórias sobrenaturais.
Mais recentemente, as telas da Rede Globo foram invadidas por duas telenovelas, no horário das sete, com enredos de vampiros que fizeram frisson junto à garotada: a primeira foi Vamp, exibida em 1991/1992, escrita por Antonio Calmon e dirigida por Jorge Fernando. A segunda foi O Beijo do Vampiro, no ar em 2002/2003, também escrita por Antonio Calmon e dirigida por Marcos Paulo. Ambas eram embaladas pelo tom da comédia, com elencos de bons atores, cenários fantásticos e efeitos especiais, e ficarão na memória da audiência nacional pelo humor, o riso e a gargalhada.
Todavia, o gênero da literatura de terror gótico adaptada para o cinema e hoje nas plataformas de TV streaming (filmes e séries) tem Anne Rice (Nova Orleans, 1941-2021) como sua principal representante. Anne Rice se tornou conhecida pelas Crônicas Vampirescas, iniciada com o livro Entrevista com Vampiro (1976), em seguida O Vampiro Lestat (1985) e A Rainha dos Condenados (1988), sendo estes os mais famosos, mas há vários outros. Além das crônicas vampirescas, Anne Rice se popularizou com os livros da Série Bruxas Mayfair, que inclui A Hora das Bruxas I e II (1990), Lasher (1993) e Taltos (1994), sendo A Hora das Bruxas um de seus best sellers.
Dentre estes títulos, Entrevista com Vampiro (traduzido no Brasil por Clarice Lispector) foi adaptado para o cinema, com produção de David Geffen e direção de Neil Jordan (1994), sendo estrelado por Tom Cruise (Lestat), Brad Pitt (Louis) e Kirsten Dunst (Claudia), recebendo indicação ao Oscar e Globo de Ouro.
Sinopse: Um jornalista biógrafo entrevista um jovem que afirma ser vampiro. Louis de Pointe du Lac, um homem que perdeu tudo, narra suas experiências dos últimos 200 anos e reconta seu encontro com Lestat de Lioncourt, uma criatura da noite.
Posteriormente, o livro A Rainha dos Condenados foi igualmente adaptado para o cinema com direção de Michael Rymer (2002), estrelado por Stuart Townsend (Lestat) e Aaliyah (Akasha), morta em acidente de avião seis meses antes da estréia do filme.
Sinopse: Trata-se da história do vampiro, Lestat, que após acordar de um sono que durou muitos anos se depara com um mundo completamente diferente do que conhecia. Após se acostumar com o “novo mundo” ele se torna um astro do rock, mas então ele descobre que a rainha dos vampiros, Akasha, quer que ele se torne seu rei.
A corrida pelos canais de TV streaming gerou o desafio de se adaptar as grandes obras literárias para o formato das séries on line. Assim, Entrevista com Vampiro foi adaptada como série de TV pela empresa AMC (2022) e lançada no Brasil em 2024.
Os dois volumes do livro de Anne Rice, A Hora das Bruxas (As Bruxas Mayfair), foram adaptados para o formato digital pela Lionsgate, no Brasil disponível pela Amazon Prime Video, em duas temporadas (em 2023 e 2025), cada uma em nove episódios de 40 minutos.
Enredo da 1ª temporada: a série discorre sobre o despertar dos poderes sobrenaturais de Rowan Fielding: uma neurocirurgiã que se envolve na morte de um homem. Após o acontecido, ela é tragada para a história de sua biológica, que há muito pensava estar enterrada, e descobre ser a herdeira de um casarão sinistro em Nova Orleans. Ela chega à casa procurando por respostas, mas descobre um passado sombrio e percebe a presença de um mal ancestral no casarão que herdou. (Olhardigital.com.br)
A grande rainha da literatura POP de horror gótico, que faleceu em 12.12.2021, ganhou a Biografia Vampírica – Anne Rice (mais de 500pags), escrita pela psicóloga-jornalista Katherine Ramsland, publicada no Brasil, pela Editora DarkSide, em 2024.
Anne Rice nasceu em Nova Orleans, nos anos 40 (terra dos famosos cemitérios e do vodu), onde cresceu, em uma fervorosa família católica, filha de pais muito cultos que logo cedo a ensinaram a ser independente. E ali se habituou a escutar as conversas dos mais velhos sobre temas sobrenaturais. Mas a mãe Katherine se tornou alcóolica e morreu quando Anne tinha apenas 15 anos, e ela renegou sua fé em Deus. O pai Howard casou-se novamente e se mudou com a família para o Texas, depois foi sozinha para San Francisco, onde conheceu o futuro marido Stan Rice, e onde se formou em Letras e Escrita Criativa. Sua filha Michelle morreu de leucemia, com apenas cinco anos, o que a deixou devastada e a fez se jogar no ato de escrever (daí surgiu seu primeiro livro Entrevista com Vampiro). Ela e o marido tinham tendências outsiders e ela ampliou seus horizontes orientada para uma ética-estética “marginal”, envolvendo-se em questões temáticas de gênero, crítica do conservadorismo, luta radical pela paz, liberdade, revolução nos costumes e comportamento no contexto da contracultura estadunidense dos anos 60/70. Nessa esteira viria a produzir uma vasta literatura underground, com apelo sensualista, erótico, contra o racismo, a misoginia, a homofobia e interessada nos temas existencialistas (fazendo profundas leituras de Sartre, Camus, Nietzsche e outros filósofos libertários).
Anne Rice revolucionou a literatura gótica de terror, criando os vampiros distintos dos monstros característicos daquele estilo literário. Seus personagens são sentimentais, questionadores, críticos e contestadores; logo, Anne Rice foi aprofundando seu trabalho de maneira a elaborar uma filosofia subjacente à sua literatura, que em última instância faz uma crítica aos valores da civilização cristã, à sociedade burguesa e ao patriarcado.
Paulatinamente, a medida em que seus livros foram ganhando popularidade, prestígio e lugar exitoso no mercado editorial, Anne Rice foi arregimentando legiões. Seus milhões de fãs não só na América, mas na Europa e inclusive no Brasil assimilaram suas mensagens e ressoaram novas ideias mundo afora de maneira a criar uma marca no contexto da cultura POP. Anne Rice se tornou mitológica para além da literatura, mas se irradiando iconicamente nos diversos segmentos do mercado até explodir nos vários espaços-tempos da vida cultural, no jornalismo, na música, no teatro, poesia, cinema, artes plásticas, fotografia, quadrinhos, animação etc.
A Biografia Vampírica – Anne Rice consiste em uma obra que vem a preencher uma lacuna importante tanto junto aos fãs da literatura gótica, quanto no cerne estudos acadêmicos (e lítero-filosóficos) nos Estados Unidos, Europa, alhures, devido à sua mensagem de reformulação do pensamento, da linguagem e das vivências individuais numa época de experiências pouco criativas. Numa palavra, os seres sobrenaturais (pós-humanos) são extensões do inconsciente, projeções das criaturas humanas.
P.S. No momento em que escrevo, saiu a notícia de que a nova versão do filme Nosferatu (Robert Eggers) está batendo recorde de audiência, sinal de que os humanos ainda apostam no mito da vida indestrutível. E para espantar a urucubaca de 2024 e mandar bons presságios, 2025 será o ano da serpente no horóscopo chinês e no Brasil, Oxumaré (sinal de riqueza e prosperidade)

Claudio Paiva
Professor Titular - Departamento de Comunicação - UFPB. Mestrado e doutorado em Sciences Sociales - Universite de Paris V (Rene Descartes).