Tal como ocorreu em 2005 e 2009, o mundo se assusta mais uma vez com a seca na Amazônia. O texto que segue eu escrevi em 2005, primeiro ano em que tivemos ciência de que aquele bioma não está imune à escassez hídrica – o que é trágico para toda a biota regional, tamanha é a dependência da água naquele ambiente. Os fatos e a seca de hoje ratificam o texto de ontem, que continua atual. Segue:
“A bacia amazônica se constitui na maior rede fluvial do mundo, se estendendo por cerca de 6 milhões de quilômetros quadrados, banhando áreas de quatro países: Bolívia, Peru, Colômbia e Brasil. Em terras brasileiras sua rede hidrográfica drena todos os estados da região norte e a maior parte do estado do Mato Grosso, cobrindo uma área de 4 milhões de quilômetros quadrados – quase metade de todo território nacional. Esse gigantesco complexo hídrico conta com uma rede fluvial de mais de 1.100 rios, tributários diretos e indiretos do maior deles – o Rio Amazonas. Os rios que a compreendem têm suas nascentes localizadas em três grandes complexos geomorfológicos: cordilheira dos andes, planalto das guianas e planalto central brasileiro. Dessa forma pode-se saber que esses rios são alimentados por regimes e fenômenos climáticos distintos.
Aprendemos que a Amazônia é uma região úmida ou super úmida onde não há ocorrência de estação seca. Mas não é bem assim. Nos estudos regionais, onde se trabalha com escalas mais precisas, é registrada a existência de áreas sub úmidas, em cujos domínios há a ocorrência de uma estação seca e presença de floresta mais esparsa, lembrando o Cerrado. Isso só é percebido nas alterações do regime hídrico dos rios menos extensos e de menor volume d´água, pelo menos até então. Acrescento que, quando são feitas referências à “estação seca” na Amazônia, fala-se de quatro meses de estiagem, cinco, no máximo. Esse ciclo se repete nas faixas sub úmidas, anualmente, entre os meses de maio e setembro, há centenas ou milhares de anos e jamais havia representado ameaça ao equilíbrio ecológico daquelas áreas. Es- se processo tem se acentuado nos últimos tempos e está diretamente ligado ao maior aquecimento das águas dos oceanos Atlântico e Pacífico.
Ainda que a estiagem se estenda por seis meses, como neste ano, induzida pelas razões já citadas, esse fato por si só não traria as consequências imediatas que ora testemunhamos. Os pequenos rios perenes da região estão se tornando efêmeros porque estão perdendo sua sustentabilidade em função do desmatamento promovido pela exploração madeireira na região e pela expansão da fronteira agrícola. Estas são as causas com impacto imediato no regime hídrico das bacias secundárias que convergem para o médio curso do rio Amazonas. Com o desmatamento, tanto o solo quanto os rios perdem sua capacidade de reter água por um maior período de tempo, propriedade e condição essenciais para que uma rede fluvial mantenha o seu nível mínimo durante a estiagem, enquanto aguarda a chegada das chuvas da estação seguinte. Sem a cobertura vegetal de antes, o escoamento das águas passa a ser mais intenso, porém, mais breve, rebaixando o nível fluvial com antecedência.
O mais curioso disso tudo é constatar que as atividades que ora protagonizam a destruição daqueles ecossistemas não têm sustentabilidade econômica num longo prazo. A maior parte do solo da Amazônia tem baixa fertilidade exigindo que sejam feitas correções de solos numa escala que não compensa economicamente. Quanto à exploração madeireira, a questão é merecedora de crítica ainda mais severa. Essa atividade não respeita o longo ciclo de vida das grandes espécies vegetais, que não é renovável em menos de cinqüenta anos – cem anos para algumas espécies. No livro “A Amazônia” (Time-Life – Cidade Cultural, 1993), o autor e pesquisador da vida selvagem, Tom Sterling, que fez várias incursões pela região Norte do Brasil no final dos anos sessenta, já manifestava preocupação com a sustentabilidade da região. Naquele tempo ele teve contato com os projetos de “expansão da fronteira agrícola” promovida pelo então governo militar. Tais projetos partiam do pressuposto de que as plantações seriam tão viçosas quanto a floresta luxuriante. Como conhecedor das propriedades do solo daquela região, ele previu que muitos desses projetos seriam abandonados, o que acabou acontecendo. Na Amazônia, a floresta retira da água 80% da matéria orgânica de que necessita, sendo o solo um mero coadjuvante.
A Amazônia é um mundo completo em si, adaptado às condições não encontradas, nessa escala, em nenhum outro lugar do planeta. Por ser uma região de características peculiares, o drama da estiagem se reveste de maior complexidade. Os rios da região, que na época das cheias podem oferecer até 50.000 quilômetros de leitos navegáveis, se constituem, em muitos casos, na única via de acesso e de transporte para muitos povos ali residentes – além do suprimento de outras necessidades. Trata-se de um ecossistema bastante frágil, vulnerável à ação humana. Uma vez quebrada a harmonia entre os elementos que lhe dão sustentação, não há mais como reverter o processo. O que ora testemunhamos na Amazônia pode ser visto como o prenúncio de um futuro semiárido ao qual aquele bioma está condenado”.
Dermival Moreira
É bancário aposentado, com Licenciatura em Geografia na UFPE e é autor de “Identidade e Realidade – artigos e crônicas”.