Era noite de São João. Eu estava no fundo do palco, esperando para assistir ao show de Alceu Valença, quando o próprio entra no palco e começa a fazer uma série de exercícios de preparação corporal. Eu, que por força do costume, há anos fazendo preparação corporal para os meus atores, fiquei imediatamente absorvido pelos movimentos que Alceu fazia sob os olhares indiferentes de todo o pessoal que lá estava, exceto o meu, que jamais havia visto um cantor se preparar daquela maneira, ao modo como fazem os atores para pisar nas tábuas sagradas de um palco.
Ao olhar para aquele cara naquele instante, para além da curiosidade profissional, comecei a ver o poeta que muito me encantou com versos pungentes, como o que fala da “solidão que é fera”, que devora, que “faz os relógios caminharem lento, causando um descompasso no seu coração” e a lembrar de quantas vezes esses versos chegaram em minha memória. Eu, no fundo do palco, ali, sozinho, a ver aquele homem no meio a se movimentar sozinho, eu o admirava ainda mais, lendo os movimentos do seu corpo que se energizava para o show que faria dali a instantes.
Me veio à memória o garoto que eu era, leitor de poetas que me arrebatavam a alma e o juízo e que comigo atravessaram boa parte da minha adolescência e juventude, quando então eu pouco me dava conta da música popular brasileira, que me era quase indiferente. Eu tive a sorte de viver numa cidade que tem uma orquestra sinfônica fantástica e que teve Eleazar de Carvalho entre os seus regentes, além de um sem número de orquestra de câmera. Ambas ofereciam concertos gratuitos todas as semanas, e os meus ouvidos, a minha sensibilidade, estiveram durante muitos anos voltados para os poetas que a tradição consagrou e a música de concerto que me transportava para outro universo. Até que me esgotei de tanto ler Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Cecilia Meireles, Carlos Drumond de Andrade ou Augusto dos Anjos, os meus poetas de referência, cuja influência foi de fundamental importância para a minha formação humana e artística. Comecei então a procurar poetas contemporâneos, novos livros, novos lançamentos, e aí, ao contrário do que eu esperava, não encontrava a poesia que me arrebatasse o espírito do modo como os velhos me faziam. E assim, com essa fissura na minha percepção e leitura, fiquei ainda um bom tempo voltando para os meus poetas, mas, tipo doce de leite demais, eu estava enjoando de me alimentar com os mesmos versos. Foi quando eu comecei a prestar mais atenção à música popular brasileira. E aí, para a minha surpresa, eu que pensava que a poesia morrera com os meus poetas de cabeceira, comecei a descobrir que a poesia mudara de endereço, não estava mais registrada nas páginas de um livro, mas girava sonora no acetato de um disco. E foi em situações da vida real que eu descobri o poder da poesia cantada, como, por exemplo, Alceu Valença dizendo “era tarde demais pra ser sozinho”, na primeira manhã em que os amantes se separam.
Estas coisas me vêm à memória por esses dias em que eu li a saborosa biografia do poeta da Marina dos Caetés. PELAS RUAS QUE ANDEI, é o título do livro escrito por Julio Moura, e que teve lançamento recente na Livraria Travessa, no Leblon. Amo ler biografias de pessoas que me encantam de alguma maneira. E Alceu Valença é certamente uma dessas pessoas. Vida e obra são coisas diferentes, mas intimamente interconectadas. A obra não existiria sem a vida, isso parece óbvio, mas sem a obra a vida pode não ter qualquer singularidade, e ser uma vida comum. Mas até aí a poesia canta, encanta, como quando Caetano Veloso escreveu: “sou um homem comum, qualquer um”. Não, um poeta como ele, como Alceu, não é nem jamais será qualquer um. Esse sou eu, pode até ser você que me lê neste instante.
Ao ler PELAS RUAS QUE ANDEI encontro a observação da jornalista Ana Maria Bahiana, na página 186, quando ela diz, a respeito de Alceu Valença: “Longe do palco, em roupas civis, parece bem menor, uma espécie de duende sertanejo de olhos brilhantes”. Isto me remete ao fundo do palco, eu observando Alceu preparando-se fisicamente para entrar em cena, espécie de palhaço cibernético, e me lembrando que um dos mistérios que me conduziram para dentro do teatro foi a percepção de que o corpo cênico é diferente do corpo civil, e no palco, que tudo aumenta (ou diminui), o corpo se agiganta, e que Alceu, quer consciente deste fato ou não, estava justamente energizando o seu corpo, transformando-o no corpo cênico agigantado que se veria dali a instantes.
O livro de Julio Moura aponta para o pensamento desse gigante, quando enfrenta até mesmo preconceitos inventados por outros da área (p. 238, 239) como Sergio Cabral e João Nogueira, contra os “paus-de-arara”, por estarem tocando em demasia nas rádios: Diz Alceu Valença: “Deixou-se de discutir a estética. Para não ter preconceitos, inventaram conceitos”. Uma coisa encobrindo a outra. E de preconceitos concebidos como conceitos nordestinos entendem.
A biografia de Alceu Valença é uma agradabilíssima leitura, o que muito ajuda a penetrar nos segredos e mistérios do poeta de São Bento do Una, desde a sua formação familiar, os seus primeiros passos na carreira artística, os muitos imbróglios enfrentados e quase sempre engraçadíssimos, como a sua primeira viagem à França com o intuito de tocar suas canções na terra de Voltaire, em bom português com sotaque nordestinês. Ao longo das suas quase seiscentas páginas vê-se a aventura do homem, do poeta, do músico, do pensador da cultura brasileira, do cineasta, do político com razão e a desrazão do anarquista nato, Alceu Valença.
Quando viu que apenas eu, no fundo do palco, o observava no Ponto de Cem Réis, Alceu, pra minha surpresa, veio até a mim e disse: “muita gente pensa que eu sou doido porque faço isso”. Eu, admirado e amando ver aquilo que com os meus elencos sempre faço, disse ao poeta em resposta: “eu não penso, tenho certeza”. Ele me olhou com certa seriedade e calou, não sei se concordando, ou achando que eu seria mais um a não entender os impulsos criativos do poeta, e eu ainda estava longe de conhecer a biografia do Doidinho de Dona Adelma, que fez naquela noite um show espetacular.
Paulo Vieira de Melo
Ator, escritor e diretor.