Domingo foi o Dia Nacional do Idoso. Vi isso nas redes sociais. E, como o domingo é o meu Dia Particular do Ócio Total (nem sempre e nem tanto), me peguei a pensar nessa coisa de idade.
Lembrei de um tempo já distante, e bem distante, pois que sendo eu uma idosa que já pode pagar meia entrada em eventos culturais, a tal memória veio da infância. E a forma em que eu via a velhice de lá, daquele lugar em que não se tem parâmetros para nada. Acontece que uma tia costumava visitar o Asilo São Vicente de Paula, em minha cidade, e algumas vezes me levava junto. Um péssimo passeio de domingo: eu voltava carregada de algo que desconhecia, mas que agora sei, era angústia. Então, envelhecer era aquilo?
Porém, no decorrer dos dias eu encontrava a velhice em outras formas. Meu avô materno e minha avó paterna, por exemplo, já idosos, sim, estavam muito longe desse modelo. Resumiria o que os dois representavam na palavra vitalidade: ele de uma energia de paz e alegria, ela de uma força, determinada, por vezes autoritária. Do que se nutriam aquelas duas árvores frondosas, não faço ideia. Mas gosto de pensar que trouxe comigo uma poção mágica que os dois consumiam. Na verdade, é o DNA mesmo. E não era só os dois, havia outros e outras nas minhas proximidades, com vida bem diferente daqueles do asilo.
O que determinava essas diferenças, logicamente, não me ocorria pensar na época. Hoje sei que há inúmeros fatores: algumas vezes as diferenças de classes sociais, em outras os estilos e escolhas de vida. Porém, me ocorre pensar que uma diferença fundamental parece estar na mente de cada pessoa, na forma de ver o mundo, na forma de viver neste mundo – e atentem para o que vem a ser “viver neste mundo”.
Quando o assunto é idade, eu sempre digo que, em uma vida de tantos desafios, de tantos problemas, de tantos encantamentos, tantas e tantas histórias, tantas gentes, eu nunca parei para pensar em idade. Passei por essas que as pessoas consideram como portais para novas fases, sem dar a mínima atenção para elas. Talvez por ser uma versão nordestina de Matrioska – aquela boneca russa que tem outras bonecas dentro dela com tamanhos diferentes. Pois bem, eu sou uma mulher de idades diferentes a depender do dia, da hora, das situações. Digo versão nordestina quando imagino lugares longínquos em tempos de seca, se uma mulher com uma rara lata d’água na cabeça vai parar para problematizar idade. Mas, isso é outra história aonde já vou adentrando aos sertões, perigando perder o rumo da conversa.
Então, cheguei aos sessenta. E aí,sim, pensei algumas vezes, meses antes de chegar aqui. Pensei em planos de saúde que cubra problemas graves, em fim de festa, cremação e outras coisas de uso convencional para o que denominam de terceira idade. Planejei uma festa onde eu pudesse ver e abraçar todo mundo, porque vai que… né? Mas, aí veio o dia, o portal para a vida de idosa. Eu bebi umas cervejas, fui brincar carnaval, acordei de ressaca e no dia seguinte estava eu do mesmo jeito, e fui esquecendo de problematizar porque questões maiores já estavam na fila preferencial há tempos.
Sim, questões maiores em termos de importância diante da vida – da minha e de outras vidas, que vem a ser, digamos, as questões coletivas.
Porém, algumas coisas acontecem, sim, quando se chega aos 60, ou mesmo antes,aos 50. No meu caso, havia amigos pensando que eu tinha 55 e se espantando com isso. E há um fato curioso: sempre fui uma pessoa de ter amigos e amigas de todas as idades, e comecei a constatar que algo está se invertendo nessas faixas etárias. As pessoas amigas entre 55 e 80 anos me parecem bem mais jovens que os amigos e amigas que estão entre 21 e 39 anos. Claro que há alguns que estão envelhecendo de uma forma desesperada, seja no sentido de “queimar logo todos os cartuchos”, ou no sentido da tal angústia. Mas, em geral, estão se reafirmando em decisões sábias. Não aceitam rótulos, são independentes, continuam pessoas produtivas, inventivas, lúcidas e livres, não se enquadram em modelos, e aprenderam as difíceis palavras “sim” e “não” – usadas antes de mergulhos profundos ou para determinar limites.
E aqui me pego, de repente, maravilhada com esse presente que a vida me dá de conhecer algumas dessas pessoas: tem uma que é referência para muita gente, e a que resolveu mudar de vida e de lugar, colocando a mudança no carro vindo buscar novos desafios, o que compõem músicas e escreve em uma criatividade que não cessa, a que tem os olhos brilhando com suas novas invenções e ideias, o poeta que vive o amor dos que se seguiram a sua vida e bebe seu vinho com a leveza de sua consciência, o que enfrenta as perdas e se reergue como quem talha a madeira da mesa onde a vida ainda se põe a si mesma, e ainda sorri, o que quer manter vivo o carnaval nas ruas e apressa o passo, a que manda um sonoro palavrão e afia a faca da sua firme existência… São tantas e tantos, e aqui lembrei apenas de poucos, porque, claro, embora conheça pessoas de todas as idades, essa faixa etária do lado de cá vai aumentando. Já os mais jovens estão ocupados em problematizar tudo, estão presos a regras, estão preocupados com modelos, com aparências, estão em busca da meta, estão perdidos entre tantas coisas, e o pior, estão querendo reinventar a roda. E aqui, no tal “reinventar a roda” chegamos ao Etarismo.
O tempo é de muitos rótulos, divisões e invenções. Eu permaneço atenta a tudo que me interessa. No que se refere as diferenças e as discriminações, entendo que se deve nomear o que precisa ser reconhecido, mas percebo as disseminações que fragmentam o que precisaria ser unificado. (Lá vou eu entrando em outro assunto…) Pois, entre tantas definições e palavras definidoras, me peguei atenta ao Etarismo.
Já acontece um pouco comigo, mas percebo muito com outras pessoas. É algo do tipo reposição de peças nas engrenagens do mundo. A urgência em tirar o mais velho de cena para dar aquele ar jovial, antenado, descolado, “instagramável” as coisas todas e a todas as coisas. Uma juventude (algumas pessoas já nem tão jovens assim) que se julga eterna, uma pandemia de Complexo de Dorian Gray (quem nunca leu o Retrato de Dorian Gray o clássico de Oscar Wilde, procure o filme na Netflix, pois para quem não perde tempo, é mais rápido que ler um livro…) É lamentável esse tentar desconhecer o passado e ignorar o futuro – isso para quem terá um futuro para envelhecer. Quem não morrer antes, vai envelhecer também – isso está entre aquelas coisas óbvias, mas que é bom que se diga. (Existe uma espécie de botox imaginário no que é o óbvio). Vai envelhecer, e de nada adianta um porão para esconder a sua velhice. O único jeito é viver o agora, e deixar viver quem já vem vivendo há mais tempo e vem abrindo caminhos. Claro que não perdi de vista a minha impressão de que velhice ou juventude é coisa da mente de cada um, de cada uma. Portanto, quando falo das pessoas que abriram caminhos, sei de quais estou falando e sei de outras que nem caminho tiveram, pois se fecharam em suas caixas de preconceitos, de regras e modelos, e apodrecem nelas – não será esse também o caso de alguns jovens?
Valeska Asfora
Escritora, Assistente Social, Mestre em políticas públicas, Educadora, Produtora Cultural. Autora do livro “Anayde Beiriz – a última confidência”(2022)