Uma das maiores tristezas foi quando tive a notícia, “definitiva”, de que a minha mãe estava cega.

E uma enorme alegria, algum tempo depois, quando ela voltou a enxergar!

Passou três anos nas trevas, na fila de espera por um transplante de córnea. Lamentavelmente, tudo só dependia da morte de alguém, mas que morresse no instante em que chegasse a sua vez. A primeira experiência aconteceu pouco mais de um ano, mas a cirurgia não foi bem sucedida. O organismo não quis, houve alguma rejeição e a escuridão aumentou, a tristeza também.

Morando no interior, a seis horas de distância da clínica, dois anos depois ela foi chamada às pressas pelo médico. Uma jovem de 28 anos, num bairro da capital, acabara de perder a vida em acidente de carro. Chegara a vez da minha mãe, ia ganhar uma córnea de 28 anos, mas precisava vir logo, o órgão não esperava tanto.

Naquele fevereiro de 2003, numa tarde carnavalesca, levei minha mãe para a clínica de olhos. Assis, o meu irmão mais velho, estava conosco no carro, e às 15 horas daquele domingo ela teve entrada na sala cirúrgica. Depois, ficamos os dois irmãos à espera, ouvindo as marchas de carnaval que vinham da avenida próxima. Para não ficarmos ali, apenas esperando sem fazer nada, decidimos ir até a avenida.

O bloco das Virgens de Tambaú começava a sua concentração entre a praça de Miramar e a Avenida Epitácio Pessoa. Eu e Assis nos sentamos no meio-fio de uma calçada, silenciosos, olhando os foliões na pista. Homens com roupas de mulheres, usando nádegas e seios postiços, passavam ao lado e diziam gracinhas. A gente só olhava, claro, pois a nossa mãe estava sendo operada num quarteirão ao lado. Não havia sentimento de culpa: finalmente, estávamos na espera de algo realmente bom em nossa família. Mas havia uma ansiedade e, portanto, não era motivo para carnaval.

Por outro lado, um curioso sentimento de culpa veio se apossar da nossa conversa. Foi quando me lembrei da moça que tinha morrido ontem, a do acidente de carro, cuja córnea estava vindo alegrar a nossa casa. Não sabíamos quem era a moça, ou quem fora, pois são detalhes que a clínica não revela. Mas um comentário do meu irmão, naquele momento, nunca me saiu da cabeça:

– Por causa da morte dela, alguns estão chorando neste momento, enquanto nós estamos felizes…

Dois meses depois, aquele meu irmão iria embora também, mas naquele instante não sabíamos disso!

A vida prega surpresas e ironias. Minha mãe voltou a enxergar e continuou vendo o mundo com um olho só. Ela ainda sonhava em fazer o transplante do outro lado – mas convenhamos que, para quem não via nada, conseguir uma segunda córnea seria tirar a chance de outro, algum paciente que ainda estava esperando como ela esperou.

Na manhã de primeiro de maio daquele ano, em um dos corredores do Hospital de Trauma, uma assistente social me chamou para uma conversa. Eu tinha acabado de sair do necrotério para reconhecer o cadáver do meu irmão, falecido na madrugada, e ela disse que precisava conversar em particular comigo. Começou com aquela história bonita da vida humana, sobre tantas pessoas que necessitam de órgãos etc., mas que precisava da autorização da família…

Ora. Pelo que me constava, o meu irmão havia morrido de falência múltipla dos órgãos, e então a minha resposta foi logo uma pergunta de certo modo grosseira:

– E tem alguma coisa nele que ainda preste?

Ela me olhou de um modo alegre e suplicante, concordando com a inutilidade dos órgãos do meu irmão – mas revelando, enfim, a única coisa que ainda havia restado para salvar a vida de alguém. E respondeu num sopro de voz:

– As córneas.

Naquele momento, me lembrei da tarde em que vimos as Virgens de Tambaú. Mas lembrei sobretudo da minha mãe e caí em lágrimas.