Que tal um olhar mais atento para as ruas da cidade? Paredes estão pichadas ou grafitadas. Meninos caminham na geografia da fome. Um amontoado de fios e paradoxos completam a paisagem. São os tais silenciamentos rebelados. Há uma mansidão estúpida nos condomínios de luxo enquanto os muros gritam. Ao ouvir e ler atentamente os pixos e os grafites, algo nos diz que não sabemos de nada. Lembro quando Giga Brown, um artista das ruas, teve problemas com a polícia ao grafitar paredes de um prédio público em ruínas. Foi acusado de “depredar com arte um patrimônio público abandonado pelo Estado. Enfim, a hipocrisia burguesa é uma selva.

As linguagens e as contradições do cotidiano, todavia são matéria prima na arte do século XXI. Nada mais contemporâneo que a realidade. O fato é que nem todo pichador ou grafiteiro é artista. Artistas, são os que traduzem o cerco das linguagens do cotidiano. Os que sabem tecer a poesia minimalista dos traços, das palavras e das cores. Essas diferenças precisam ser apontadas. Todavia são todos transgressores. Os “pixos” nos lembram o quanto foi transgressor Tristan Tzara que, em Genebra,embaralhou as vanguardas artísticas do início século XX. O que diferencia um pichador ou grafiteiro de um artista contemporâneo é o reconhecimento dessas vozes todas que saltam das paredes e dos livros. A capacidade e ouvi-las e traduzi-las em palavras ou cores define o artista.

Quando vi a exposição de Hicor no Sesc Cabo Branco, em João Pessoa, pensei nisso tudo. Hicor é mais um artista da Paraíba que desenha seus próprios roteiros. Muito jovemainda, começa a ocupar os salões com o que explode nos becos e vielas do bairro São José. Para além da sua arte, Hicor traz a certeza de que é preciso não romantizar a favela ou a negritude. Mostrá-la, todavia, é pedagógico. Exige a humanização do olhar para a necessária restauração da história. Seu lugar de origem, em todos os sentidos, nem sempre é seu lugar no mundo. Você sai, mas o lugar sempre fica. Nosso lugar é tudo que habita a memória. Você é o seu lugar no mundo.

Hicor me diz mais ou menos isso e muito mais. Parece trazer nesta primeira exposição individual um discurso muito bem elaborado. Ele está pronto para dizer que a sua concepção de mundo começa ali na esquina da Avenida Ruy Carneiro, mas não tem fim. Afinal, ele sabe onde estão os muros das higienizações sociais e históricas. Oartista se alimenta exatamente das vozes que saltam dos muros, das paredes e dos becos. Parece medir o mundo e a arte com seus orixás, mas também com as réguas de Arthur Schopenhauer e o que ele diz sobre “pôr-se no estado do puro conhecer”. É como se os filmes que passam na memória do artista exigissem uma reapresentação para além dos seus nichos de pertencimento.

Ele sabe disso. Sabe que nascer num lugar não significa a naturalização das suas mazelas. O pertencimento real (e não teórico) está exatamente em saber interpretá-lo e traduzi-lo para o mundo. Ele sabe que transformar o mundo significa transformar-se. Eis o que me parece real e permanente nas telas de Hicor. Algo que explode em formas e cores. Ele reconhece os becos da sua infância, mas descobriu que sabe voar sobre o Rio Jaguaribe ever seus iguais num plano de distanciamento que serve, por fim, para tecer com serenidade as digitais da sua arte.O seu grito segue ecoando para muito além das paredes e suas cores, dos becos e seus gritos contidos.

O endereço do artista nas redes sociais é @hicor_.  No Instagram você poderá medir, ouvir, comparar e sobretudo conhecer melhor a “metafísica do belo” na arte de um paraibano ainda muito jovem que começou sua caminhada comandando os passos que deverão conduzi-lo mundoafora. Hicor reconhece que começou uma caminhada sem volta pelas vias tortas da arte contemporânea. Ele aponta para o futuro subindo as ladeiras do bairro São José. Reconhece as rotas de fuga, mas sabe que sua arte desperta para a interpretação das realidades. Nas suas telas Hicor descobriu a estratégia mais sensata para pintar os seus caminhos.

Cheio de ancestralidade, Hicor sabe que não precisa buscar compatibilidades no que diz com suas cores. Está tudo escrito muito naturalmente em suas telas. Ele nos ensina a olhar para as diferenças, para as segregações do preconceito que diferencia o preto do branco numa abordagem policial. O que Jacques Rancière chama de revolução estética é mais ou menos isso: “a abolição de um conjunto ordenado de relações entre o visível e o dizível, o saber e ação, a atividade e a passividade.” Hicoré uma revolução que hoje se espalha pela cidade, mas sabe que seu lugar de ser e estar é um eterno caminhar pelo mundo.