Você sabe quem é Flavio Eduardo Maroja Ribeiro? Chamando assim – pelo nome de pia – é capaz até de nem ele atender por não entender quem é o sujeito de quem se fala, mas é o cara que criou a canção tema do carnaval paraibano, o hino das Muriçocas do Miramar, Fuba ou Mestre Fuba, que é como ele gosta de ser chamado atualmente. Pois bem, Fuba é um menestrel do cancioneiro popular, autor de dezenas de frevos que João Pessoa entoa com alegria, além de ser o cara que recolocou o carnaval na mira da economia criativa.
Quando você, folião de primeira hora, vai à avenida com a sua fantasia de muriçoca ou do que for, vai forçosamente se juntar a milhares de outros foliões que têm um encontro marcado em todas as quartas-feiras pré-carnavalescas, de noites tão quentes, de corações tão acesos, de alegrias tão ardentes que inevitavelmente marcam o dia como a quarta-feira de fogo cantada por Mestre Fuba e reiterada no famoso hino: “é fogo, é fogo, é fogo/ é o trelelê, é o zum zum zum de novo”. E são dezenas de trios elétricos a se estender como uma serpente gigantesca e inquieta pela avenida a baixo, seguidos pela multidão em delírio a se amassar, a se esfregar, a se abraçar, a se beijar ouvindo o Mestre Fuba a cantar o hino do desejo, “eu quero o teu amor, quero você toda minha” e sem esquecer a ressalva importante e muitas vezes necessária: “mesmo que tenha de vestir a camisinha”.
Meu caro, minha cara, ao saçaricar alegremente você não sabe e isso pra você não importa, ao menos naquele momento, mas você está, em cada pinote que dá, em cada gesto, em cada abraço, fazendo movimentar a economia criativa da nossa cidade. Você não parou pra pensar e nem vai parar, mas faça comigo esse exercício: Quanto você acha que custa somente a quarta-feira de fogo na economia de João Pessoa? Talvez você saiba, se for alguém consciente de sua participação política, quanto a prefeitura da capital ou o próprio governo do Estado investiu no carnaval. Mas seja o que for, o valor declarado é apenas parte do que é investido na folia. Pois se você compra um glitter para brilhar ainda mais, se você compra a cerveja, o pó, a cachaça, o LSD, o loló, a maconha ou o que de sua preferência for para aditivar a sua alegria, você estará inevitavelmente movimentando a economia criativa. Quanta gente você vê a vender no meio da folia e nas margens da avenida a água para a sede, o churrasquinho para a fome? E quando o bloco passa e a folia acaba, quanta gente recolhe preciosas latinhas de alumínio e garrafinhas de plástico que vão alimentar a indústria da reciclagem? É a economia que gira enquanto a festa rola. E isto sem contar com as ocupações dos hotéis e a indústria paralela do turismo que a economia criativa movimenta: restaurantes, bares, cabeleireiros, maquiadores, costureiras, lojas de compra e aluguel de fantasias, enfim, a indústria de serviços, apartamentos para alugar, motéis para namorar.
E tudo isso começou com uma brincadeira entre amigos. A economia criativa é tão dinâmica que de muito pouco precisa. Uma ideia, alguns amigos, outros tantos que colaboram, dez pessoas e uma carroça puxada a burro e pronto, com o tempo, com a poesia brotando sonora dos altifalantes, com o ritmo contagiante do frevo, com o carisma de Fuba à frente, um amigo chamando outro para a festa, logo logo dez são dezenas, centenas, milhares de pessoas a festejar a vida, a alegria e o prazer de ser e o de estar. Este é um lado da questão. O lado, digamos, mais material que a economia criativa movimenta. Há um outro, sim, um lado imaterial e de igual ou de maior importância talvez, e esse é um dado não mensurável pela economia, principalmente numa cidade como a nossa, cujo nome raramente inspira poesia: a construção imagética de quem somos, o que somos, e qual é o nosso lugar na história.
Veja bem, quando você pensa na Bahia, por exemplo, logo a associa à magia, ao feitiço e a fé, e essa é uma construção imaginária criada por seus poetas. Quando você pensa em Pernambuco, o frevo e o maracatu saltam adiante. No Rio, o samba, preferencialmente, e agora o rap pede passagem nessa avenida do imaginário, da identidade coletiva, da cultura fervilhante do morro e do asfalto, porque é disso que se trata, a cultura popular molda a imaginação do quê e do quem somos.
Do meu ponto de vista, sempre estivemos à margem. Tanto somos e nos sentimos invisibilizados, que, ao dizer de onde somos, João Pessoa, forçosamente completamos, Paraíba. Ninguém diz, sou de Recife, Pernambuco. Ninguém diz, sou de Salvador, Bahia. Mas a nossa história nos impôs um nome, João Pessoa, uma bandeira, Nego, duas cores chapadas e nenhuma poesia. Mesmo o nosso poeta maior, um dos três grandes da língua portuguesa, ao lado de Camões e de Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos é mais festejado em Minas Gerais, onde ele viveu alguns poucos meses e onde morreu, do que na Paraíba onde ele nasceu.
Mas eis que um grupo de amigos, com o intuito de festejar o aniversário de alguém dentre eles resolve fazer uma festa simulando um carnaval que não existia. Com o tempo criou o nosso carnaval antes do carnaval oficial do país, e aí está o povo nas ruas a cantar loas à nossa cidade, a movimentar a economia criativa e a criar o imaginário do que somos. Graças à verve poética de Flávio Eduardo Maroja Ribeiro, Fuba, o Mestre Fuba, podemos agora dizer para quem tem ouvidos para ouvir: “somos a porta do sol deste país tropical/ somos a mata verde, a esperança/ o coração do extremo oriental”.
Paulo Vieira de Melo
Ator, escritor e diretor.