Sempre vi a poesia muito mais como um processo. Às vezes está no poema. Às vezes, não. Penso que um poema nunca está totalmente pronto. Mesmo consagrado aos cânones que, em geral, são máquinas de silenciamentos. O fato é que a escrita do poema é um território de incertezas. Portanto, não podemos buscar exatidão no rigor. Apenas aventura. Ainda que uma aventura planejada, como diria Décio Pignatari.
O livro Ensaios da Partida da poeta Énia Lipanga é um forte arremesso. Um voo antes do pássaro. Uma cicatriz de linguagem e vida. São poemas em permanente ebulição convidando leitores e leitoras para fatiar versos e espelhar os clarões sísmicos da noite escura. Sabe que é preciso oceanizar-se na busca da invenção. Nada mais matemágico e menos matemático. Afinal, rigor nunca significou rigidez.
Énia nos traz uma poesia toda configurada no ato de existir. Nos confrontos que isso provoca. Nas rupturas que produz e propõe para a própria vida. Feminista, transgressora de afetos revolucionários que é. Ao dar voz aos tambores da linguagem, lembra um tanto Roland Barthes: “eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz”, escreveu o autor de Fragmentos de um Discurso Amoroso, Prazer do Texto e tantos livros tão necessários.
Moçambicana medular, Énia traz na pele algumas das melhores tradições da Poesia de Língua Portuguesa. Aliás, desde que li Craveirinha e Noémia de Sousa pela primeira vez tenho dito que algumas das grandes obras da nossa língua estão no continente africano. Uma tradição poética que abre nossos olhos para a África contemporânea da também moçambicana Hirondina Joshua, dos angolanos Helder Simbad e Ondjaki. Também Olinda Beja com a força da oralidade e da musicalidade. Poesia que respira e transpira por São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Guiné Bissau…
Énia é fundamentalmente memorialista. Mas de um memorialismo expandido que percorre ancestralidades, desamarra o instante e conversa com o horizonte. Aquilo que ainda não foi vivido, mas pulsa na contracorrente desse rio onde a poesia escorre suas horas em segundos. Vejo na sua poesia um bom lugar para se pensar no que de fato é o fazer poético. Sem os pudores das bolhas de burocracia teórica.
Ela conhece bem limites e ilimites da ciranda lírica com a qual se veste. Revela-se ampla no sumário dos seus poemas. “Difícil é ser mar/ Quando as artérias fervem”, diz a poeta. Versos que voam de um poema para outro sem perder o fio de barbante que os une. Sabe que um bom poema nunca estará pronto e que escrever jamais será um ato solitário. Essa nudez na janela mostra o que os predadores pedem e não suportam por saber da sua força tremenda remando para o lado oposto.
Sua escrita lembra muito o que escreveu Edgar Morin em Meus Demônios: “não escrevo de uma torre que me separa da vida, mas de um redemoinho que me joga em minha vida e na vida”. Traz no remelexo das suas complexidades, uma tradução do mundo e do átrio que nos prende ao poema. Esse ‘voo que some na memória tamanha a beleza do pássaro’, como escrevi certa vez tentando disfarçar em estrofes polimétricas a indefinida distância entre a poesia e o poema.
Tudo isso sem muito ostentar o despudor que é publicar um livro de poemas. Essa profanação que nos percorre fora das nossas fronteiras fragmentadas. Para finalizar trago nas palavras de Jorge Luiz Borges o que li na poesia de Énia Lipanga: “A poesia não é alheia – a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante.” Pois bem, eis-nos aqui, palmilhando verso por verso mais essa poeta da Mama África que começa também a transitar entre os continentes.
Lau Siqueira
Gaúcho de Jaguarão, mora em João Pessoa desde os anos 1980. Escritor, poeta e cronista, tem diversos livros publicados, participou de antologias e coletâneas. Ex-secretário Estadual de Cultura da Paraíba.