Fonte: Google Imagens

A televisão é um “circo eletrônico” (segundo Daniel Filho) e uma “máquina de fazer doido” (segundo Stanislaw Ponte Preta). Isto não deve ser lido no sentido pejorativo, mas considerando o circo como lugar privilegiado da expressão lúdica, realização do sonho, imaginação criadora e catarse coletiva. Quanto à “máquina de fazer doido”, convém lembrar o adágio popular: “De poeta e louco todo mundo tem um pouco”. É sinal de sabedoria quebrar os preconceitos e ideias preconcebidas. Logo, a TV, como a Rede Globo, é produto de uma “indústria cultural” poderosa, geradora de alienação e ético-politicamente complicada, mas também vigorosa usina de publicização artístico-cultural.

Assim, a TV apresenta programas de qualidade que devem ser vistos como canais de educação estética, expressão lúdico-criativa e formas de inclusão em meio à diversidade musical. Deste modo, o Programa “Altas Horas”, da Rede Globo, apresentado por Serginho Groisman, desde o ano 2000, destaca-se por uma certa originalidade, relembrando – de certo modo – o genial “Cassino do Chacrinha” (1982-1988) pela estratégia de liquidificador geral da MPB. Sua arquitetura em forma circular (como um teatro de arena) se destaca pela modulação de espaços em que se instalam os palcos, a banda musical, o auditório, e os convidados (artistas, músicos, profissionais de mídia).

Entretanto, o programa se ressalta pelo formato de programa de auditório com matiz musical; uma raridade na programação televisual brasileira. Sua popularidade se deve primeiramente pelo estilo do apresentador que emana afeto, simpatia e generosidade. Um espírito alegre, jovial e receptivo às diferentes modalidades de expressão musical (samba, rock, funk, frevo, forró, MPB etc), o que lhe confere o caráter de um mediador empenhado na preservação da memória dos artistas veteranos, participação dos grandes arcanos da arte musical e receptivo aos novos talentos em meio à diversidade de manifestações étnico-musicais. Sua plateia é formada majoritariamente por adolescentes que interagem efusivamente com o apresentador, mas também inclui as faixas etárias mais idosas, o que ratifica o matiz inclusivo do programa.

O programa “Altas Horas”, particularmente, tem homenageado artistas vivos e mortos, como Milton Nascimento (06.01.2023), Gal Costa (12.11.2022) e Rita Lee (15.04.2023). Assim, tem atraído significativa audiência dos “corações veteranos” amantes das célebres canções da MPB, e deste modo faz uma ponte formidável entre as várias gerações acústico-musicais.

No último programa “Altas Horas” exibido no sábado, 01.07.2023, a produção realizou festa comemorativa de aniversário do apresentador, reunindo diversos artistas, cantores, jornalistas, profissionais de mídia, amigos e familiares. Dentre os diversos artistas que se apresentaram em participação surpresa (Andreas Kisser, César Tralli, Diogo Nogueira, José Loreto, Kiko Zambianchi, Maria Gadú, Samuel Rosa, Vanessa da Mata e Zeca Pagodinho), o programa “Altas Horas” incluiu a atriz Isadora Cruz e o cantor-poeta-trovador Juzeh (Antônio José de Abrantes Neto), paraibanos, que participaram recentemente da telenovela da Rede Globo “Mar do Sertão”. Os “atores-cantores” interpretaram a música “A Natureza das Coisas” (Accioly Neto), já consagrada no repertório da moderna tradição de música paraibana-nordestina, especialmente na interpretação por Flávio José. Destarte, O programa “Altas Horas” confirma sua vocação musical pluralista e multicultural, incluindo – neste caso – cantores-compositores paraibanos, o que é da maior importância quando a indústria fonográfica e as estratégias de marketing cultural locais (no caso do São João de Campina Grande) – equivocadamente – dedicam um espaço-tempo privilegiado aos pseudo-artistas-sertanejos-de-plástico e encurtam o espaço-tempo das autênticas expressões nordestinas (como Flávio José).

Como se fala no jargão popular-jovem Juzeh e Isadora Cruz, despretensiosamente, “lacraram” na sua apresentação da singela e bela canção “A Natureza das Coisas”, com a espontaneidade do sotaque nordestino. Assim, a performance musical dos jovens – “inexoravelmente” – quebrou o vidro da “superindústria do imaginário global”, revelando uma vigorosa potência dos afetos alegres, e doce tradução poético-popular. O evento propiciou a elevação da autoestima paraibana, num gracioso “instante eterno” de felicidade para todos.