Foto de Paweł L.: (Disponível em Pexels)

A menina não teria nem dez anos. Naqueles tempos, antes da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente, era comum que crianças fossem criadas por outros parentes. Na minha memória, os adultos mais próximos a ela eram velhos demais para que pudessem ser seus pais biológicos. Deveriam ser avós. Ou não. Para os olhos de uma criança qualquer pessoa com mais de 30 anos é um ancião.

Estávamos em frente à igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. O casal de idosos, que é como minha memória os registra, estava sentado no chão. Era o que eu queria fazer se minha mãe não proibisse. “Ficar cheio de germe”, dizia.

Esperávamos o ônibus que nos levaria ao Sertão das Espinharas. Era no tempo em que meus avós estavam vivos. Era no tempo em que após as horas que me pareciam intermináveis, descíamos no quilômetro 9 de alguma BR e de lá, mais um interminável caminho a pé, abrindo porteiras até chegar ao sítio no qual, por mais de quarenta anos, meu avô foi uma das muitas almas de doutor Ernani Sátyro, deputado pela UDN e depois pela ARENA, membro da comissão de constituição e justiça que, mesmo doente, foi a sessão que deu parecer favorável à cassação do colega Márcio Moreira Alves, no que foi o início do ano que até hoje não acabou; e, por fim, coroou sua carreira política como governador biônico da Paraíba. “Mas, enquanto estava no poder, nunca mandou passar sequer a máquina nem que fosse perto das terras dele”, dizia meu pai.

Mas na história que agora conto, o protagonismo não vai ser dele, mas da menina que até hoje atravessa descalça o asfalto da minha memória. Estamos em frente à igreja. Para uma criança, qualquer espera é demorada e enquanto espero observo. A menina, que era mais alta e mais velha que eu, atravessa a rua. Levava consigo uma vasilha de plástico onde havia comprado, por alguns centavos, alguma medida café que um senhor, proprietário de um fiteiro, vendia. A moça segurava a cumbuca com atenção de bailarina. Talvez estivesse descalça.

Neste momento, a memória experimenta um chão de sombras e esburacado que se ilumina quando a menina chega e senta-se com os seus. A mulher do grupo abre um saco, dentre tantos outros, de onde um pão é retirado e repartido. Havia outras crianças que se sentavam no chão ao redor dos mais velhos. Lembro das mãozinhas mergulhando nacos de pão, molhando-os no café fumegante e comendo-os com barulho e alegria.

Do que me recordo em seguida é do dono do fiteiro ao lado deles com a garrafa térmica completando o café na cumbuca. O dono do fiteiro anunciou em voz alta e olho de orgulho, fazendo um giro ao redor de si, por fazer uma boa ação que aquele café ali, que ele despejava, era de graça, o que a voz feminina retribuiu ao anúncio com com desejos de bênçãos retribuição divina ao gesto.

Mas o que salvou esta imagem da minha memória foi um pequeno comentário feito pelos velhos. A menina segurava, na outra margem da rua, a cumbuca de plástico com café fumengante, os ombros em alerta, os olhos em atenção para que o líquido que lhes seria alimentaria não caísse nem uma gota que fosse no chão.

“Ela espera pela bicicletas”, comentou com voz de reprovação a velha, ao que o velho, o rosto tornando-se uma pesarosa máscara de decepção, concordava com a recriminação meneando a cabeça, amparando o lóbulo da testa com os dedos curtidos e soltando uma onomatopeia de repulsa: “ouu”.

Por todos estes anos, fiquei imaginando aquela menina, no ideal de virtude de seus velhos, atravessando a rodovia impavidamente, com a cumbuca de café na mão, sem se importar com as bicicletas que cruzavam o asfalto a toda velocidade, impondo-lhes, como um escudo rodeando seus passos, uma efígie de respeito e reverência, de modo que os veículos de duas rodas freassem de súbito para que a menina concluisse sua travessia em triunfo para alegria dos que a esperavam.