Crédito foto: Zé Euflávio

Sim, e também outro dia, quando vi as fotografias dos fotojornalistas Augusto Pessoa e Marcus Antonius, na tela da TV, lembrei-me de um mito muito antigo ouvido pela primeira vez quando ainda era muito, muito pequeno…

E certas coisas ficam na lembrança da gente para sempre. O tal mito conta que na origem da imagem encontra-se a ausência, a nostalgia, a separação dos que se amam. Relata-se a história da filha de um oleiro que estava enamorada de um jovem.

Um dia, o jovem teve que partir em uma longa viagem para um mundo muito distante e desconhecido por ele e por toda a sua família. Na cena de despedida (e as despedidas sempre deveriam ser evitadas), os dois amantes estão numa casa iluminada por uma luz que projeta as suas sombras numa parede.

Para conjurar a futura ausência do seu amante, e conservar um vestígio físico de sua presença, a moça, com um carvão à mão, percorre o contorno, pinta a silhueta do outro que ali se projeta. Na sua mente tudo acontece como um milagre.

Nesse momento último, e resplandecente – e a fim de abolir o tempo – a moça “tenta fixar a sombra daquele que está ainda ali, mas que logo estará ausente”, por conta da viagem.

Assim, segundo o mito, a categoria fundadora da imagem não é a necessidade de figurar ou de imitar algo que existe, mas sim a necessidade de prolongar o contato, a proximidade, o desejo de que o vínculo persista.

Inclusive, e fundamentalmente, quando o adeus é definitivo. E na maioria das vezes o a deus faz sentido.

Sem entender bem essas coisas da imagem, vi Regis Debray dizer que a imagem nasce da morte, como negação do nada, e para prolongar a vida… De tal forma, que entre o representado e sua representação haja uma transferência de alma.

De onde venho a imagem é sempre uma procura, uma busca para encontrar na ilusão o significado das coisas, de serrotes, bichos e gente. A imagem não é uma simples metáfora do desaparecido, mas sim “uma metonímia real, uma prolongação sublimada, porém física de sua carne”.

A fotografia, imagem técnica, produto da modernidade, recupera essa carga mítica da origem. Walter Benjamin já apontava o paradoxo: “a técnica mais exata pode dar a seus produtos um valor mágico, que uma imagem pintada nunca passará para nós”.

Aqueles que olhavam as primeiras fotos participavam de um mistério – como os que, ajoelhados em frente a uma figura religiosa, creem que os santos os vê e escuta seus rogos – que os pequenos, minúsculos rostos fotografados podiam olhá-los a partir da imagem.

A fotografia cumpre, como as primeiras imagens, a função de meio entre o que é e o que foi, entre os que ainda são e os que já não estão.

Nas palavras de Roland Barthes: “la foto é literalmente una emanación del referente”. A fotografia leva ao universo iconográfico uma imagem precisa, definida, mas que em essência é um signo emanado diretamente do referente.

Testemunha a presença real no passado do corpo ao qual faz referência. Nenhuma outra imagem colaborou tanto para conjurar a ausência e cumprir tão cabalmente com o mito de origem.

Toda fotografia afirma que o que nela vemos e encontrou-se lá, esteve lá, mas foi imediatamente separado. É assim que Barthes encontra o poema da fotografia, ao certificar que isto (o referente) foi.

A faculdade de atestar o que foi, de reter o que se desvanece é a memória. A memória é constitutiva da condição humana. Desde sempre temos nos ocupado em produzir sinais que permaneçam mais além do futuro, que sirvam de marca da própria existência, e que lhe dêem sentido.

Assim sendo, todas as vezes que vejo certas imagens de Marquinhos e Pessoa desconfio que eles são mestres e bruxos de uma arte que dominam como poucos.