Eu sempre tive pena de Jesus, por vários motivos, e talvez o primeiro seja porque sua mãe, para que ele nascesse, e contrariando a natureza, não fodeu. E depois, não bastasse esse comecinho de vida insípido, ainda foi pendurado numa cruz e dizem, os seus seguidores, que foi pra nos salvar. De minha parte, meu caro, sinto muito, foi um sacrifício em vão, porque quando eu penso na qualidade das gentes que andam com uma bíblia debaixo do sovaco e que dizem que irão para o céu, eu fico pensando que os poetas que eu amo, os artistas, os escritores que sempre me seduziram, os meus amigos e amantes estão todos irremediavelmente no inferno, e é então para lá que eu quero ir, para encontrar a minha patota e continuar pela eternidade com essa vidinha besta de devaneio poético.

Mas a verdade é que eu não tenho pena, não dele, porque Jesus nunca existiu como homem. Nem como espírito. É um mito, e se você quer saber o que digo, leia Mircea Eliade, Mito e Realidade, e você saberá de que se trata de um mito cosmogônico. Leia W. J. Solha, A Verdadeira Estória de Jesus, e você verá ficcionalmente como esse mito poderia ter sido criado. Mas, atenção, embora ficção, W. J. Solha é um profundo pesquisador e apenas construiu uma história para acomodar a outra estória. Mas é impactante e revelador.

A nossa natureza humana nos fez gostar de histórias. Essa afirmação está em Aristoteles, no livro Poética, no qual ele trata de analisar a arquitetura da poesia, a sua estrutura de linguagem, e eu somente me dei conta do quanto é tocante o mito de Jesus quando, fazendo a assistência de direção do Auto de Deus, um desses espetáculos da Páscoa, pelo idos de 1998, foi que eu senti e entendi a dimensão trágica dessa história, que todos a conhecemos, mas por isso mesmo queremos vê-la e ouvi-la novamente a cada ano. Uma das leis do riso proposta por Henri Bergson no livro O Riso é de que nós rimos e gostamos do que conhecemos. Mas pensando no mito de Jesus e lembrando dos muitos anos em que trabalhei nos espetáculos da Páscoa, eu ouso acrescentar de que nós gostamos do que conhecemos. E ponto. Ficcionalmente falando. Seja pro riso, seja para a dor.

Mas gostamos também de revelações, de alumbramentos, de segredos guardados, de misteriosos encantos, coisas que nos levam fatalmente a acreditar piamente em outros mitos e, no nosso caso de brasileiros, nos mitos dos orixás e nos caboclos e até mesmo nos espíritos que se manifestam nos centros espíritas, nós, pobres mortais, precisamos construir um arcabouço de estórias que nos sustentem a vida e nos deem um mínimo consolo, e que de alguma forma nos façam crer que estamos em consonância com o universo. Mistério do destino. Os gregos o resolviam consultando os oráculos. Nós o fazemos consultando os astros, os búzios, os caboclos e orixás. Mas esses, ao menos, são deuses e deusas que exprimem paixões humanas, são representações míticas da nossa natureza carnal, e graças a isso, por serem de origens africanas e indígenas e não terem tido em sua cosmogonia nenhum contato com a civilização judaica e nem com a cultura árabe, ambas emasculadoras, fodem.

O sofrimento humano está justamente na cultura da castração, essa que herdamos dos judeus, e graças a Freud, um judeu – olhaí a homeopatia se manifestando – o século vinte pôde ensaiar a libertação dos corpos. Todo o prazer provém do corpo, escreveu o poeta inglês John Donne, no século XVI, no poema que ao exaltar o amor carnal trás consigo, no próprio título, Elegia, a culpa fundamental.

Gosto da literatura erótica, e, sobretudo, gosto da literatura que transgride essa maldita herança. Descobri isto quando li pela primeira vez o Decamerão, de Giovani Boccaccio, livro escrito nos meados do século XIV, em algumas de suas novelas. Depois, ao ler Sade, o prazer foi ao paroxismo, não pela sua premissa fundamental, a dor, mas pela extensão da dor ao prazer e entender, embora não o pratique, que este é um outro caminho possível para o êxtase. Do mesmo modo descobri no Cântico dos Cânticos a beleza lírica do erotismo. Muitos são os livros que me seduziram com essa temática, direta ou indiretamente: Madame Bovary, de Flaubert; A Carne, de Júlio Ribeiro; Pureza, de José Lins do Rego, entre eles. Mas se você gosta e quer algo atual e contemporâneo, meu caro, minha cara, leia O Som de quem te ama, de Didier Guige e Helayne Cristini.

Recentemente lançado, O Som de quem te ama é um deliciosíssimo romance em que o casal, Paul e Carmen, ele músico e professor universitário sessentão, ela cantora com idade pela metade, balzaquiana por assim dizer, relatam as suas aventuras eróticas sem nenhuma culpa e com intenso prazer, com moças e rapazes caçados no Tinder, nos bares, nas viradas e virotes da vida.

Didier eu já o conhecia desde quando, ainda muito jovem, foi morar na Paraíba. Tivemos, eu e ele, no bar alternativo que frequentávamos e que tinha o sugestivo nome de Bar da Xoxota, ele recém chegado da França de onde é nascido e vivido, tivemos uma surreal conversa na qual, ele, francês, falava comigo em russo e eu, segundo ele, lhe respondia em língua à qual ainda hoje não sei. Mas nos entendíamos e nos entendemos, tanto que Didier compôs brilhantemente duas trilhas para dois espetáculos que eu escrevi e dirigi, Noite Escura e Mercedes. A grande surpresa para mim é, não o brilhantismo de suas composições musicais, mas a potência de literatura que é O Som de quem te ama. Um casal que mantém a vida afetiva em aberto para viver todas as fantasias que o desejo impõe, sem medo e sem culpa, e sobretudo por entender que o amor não pressupõe a posse do corpo e do desejo do outro, e que a felicidade de amar não consiste em dominar o outro, que esta é uma prerrogativa da cultura capitalista que ambos rejeitam, e que, por fim, a monogamia é norma para controle dos corpos e do desejo. Didier Guigue e Helayne Cristini produziram uma obra necessária e fundamental para os dias atuais, nos quais o fundamentalismo religioso, a imbecilidade sem pudores ameaçam o prazer com a regressão moral capaz de nos levar de volta à Idade Média.

O Som de quem te ama de algum modo me evoca a lembrança de Manuel Bandeira quando diz o poeta: deixa o teu corpo se entender com outro corpo, porque os corpos se entendem, mas as almas não.