O crítico, historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda definiu o olhar poético numa daquelas frases arrebatadoras. Para ele, “poeta não vê com os olhos, mas apesar dos olhos”. Lembrei imediatamente desta frase ao ler “Orgasmos da alma” (Editora Locomotiva, 2019) da escritora campinense Iviny. Uma leitura que nos convida para a poesia além do poema e para o verso além da palavra. Um encontro com as representações do que há de mais vivo e sublime no sentido de ser integralmente poeta.

Sérgio Buarque de Holanda, no ensaio “Poesia e Crítica”, diz ainda que para os surrealistas “(…) o autêntico poeta era aquele que sabia alcandorar-se nos sublimes balbucios do subconsciente, a ponto de poder dispensar a colaboração da inteligência discriminadora e discursiva.” Tal argumento nos convida a analisar o poema sem a necessidade de um bisturi teórico capaz de exumá-lo sem sujar as luvas. “Orgasmos da alma” está longe de ser um livro de poemas surrealistas.  Iviny apenas nos convida para lambuzar as abstrações da alma na busca da sua poesia. Ela nos chama para uma leitura sem pudores nem poderes.

“Autoafago do ego” (pg. 40), por exemplo, revira do avesso os “sublimes balbucios do inconsciente”. Vamos ao poema: “Quando o passado vem à tona/ tenho vontade de jogar você/ na cama e foder contigo/ até que percebas que sempre/ existiram mulheres além de mim,/ mas o teu delirar é a matéria-prima/ que só o meu corpo sabe extrair.” Iviny nos mostra o quanto existe de profundamente humano no erotismo. Todo o desvendamento dos seus versos vem das invisibilidades. O que de fato existe entre a palavra enquanto instrumento musical do poema e o ritmo interposto, é devastação e recomposição. Iviny faz da poesia uma necessidade respiratória. Ela sabe que é preciso inflar os pulmões para sobreviver numa sociedade vocacionada para a asfixia.

Algumas temáticas apresentadas por Iviny neste seu primeiro livro, tem o impacto de um soco. A escrita parece nascer como uma explosão. As feridas abertas, as cicatrizes que pulsam, a sedução dos abismos, as regras impostas pela sobrevivência e, enfim, a resistência. Ela nos mostra a coragem de escrever poemas com as mãos sangradas. Enfim, temos uma poeta mergulhada nas agonias sociais e existenciais dos nossos dias. A exemplo de “A CADA ‘JESUS TE AMA’ ELE ME COMIA” (pág.30), poema que desnuda um tabu ancorado nas farsas consagradas pelas hipocrisias do cotidiano.

Para Freud, aliás, “se por um lado o significado de tabu quer dizer ‘santo, consagrado’; por outro, quer dizer ‘inquietante, perigoso, proibido, impuro”. Coisas que não cabem na desordem das crenças desviantes que constrangem o mundo. Wilhelm Wundt (1832/1920) já dizia que “o tabu é o mais antigo código de leis não escritas da humanidade”. O enunciado poético em “Orgasmos da alma” traz, portanto, uma carga de rupturas e o desmanche necessário para a recomposição de todos os tecidos. Tudo para que seu lirismo selvagem desnude as tempestades de cada significado.

Encontrei em alguns autores, textos que certamente me ajudariam a ler a poesia de Iviny. Afinal, ler criticamente um livro de poemas é sobretudo confluir leituras. Todavia em nenhum outro texto encontraria a precisão de Rosângela Rodrigues no livro “Mulheres e amores em ficções de autoria feminina” (EDUFCG). Para Rosângela, que também assina o posfácio da obra, “O indivíduo pode assumir duas posições diante da subjetividade: submeter-se à alienação e à opressão do seu meio, ou se reapropriar dos componentes da subjetividade através de mecanismos de criação e de expressão.” Para melhor compreender a poesia estreante de Iviny eu precisava reler esse texto e encontrar esta frase.

No posfácio Rosângela confirma seu pensamento e nos diz que “um ponto alto da obra são os poemas sociais, que denunciam atrocidades contra vulneráveis, nos quais a voz enunciativa é de crianças e adolescentes vítimas de abusos sexuais, como em ‘Eu só queria brincar’”.  O livro traz também outros gritos, alguns suaves outros nem tanto. Transbordam as tatuagens da pele e da alma. A exemplo do poema “Tempo” (página 70): “eu pedi pra ele que me enxergasse, / mas só me olhava./ disse: me escuta!/ ele só me ouvia,/ calei.”

Os versos de Ivni, mesmo quando aposta na prosa poética ao modo Baudelaire, eclodem numa erosão de silenciamentos vindos de histórias que nos chegam cotidianamente como a ponta de um iceberg. Como se fosse uma síndrome de Titanic. Algo que submerge entre as notícias jamais publicadas porque os periódicos não pautam os tremores das violências silenciadas. Talvez por isso a poesia de Iviny é toda revelação. Rica em imagens e memórias reveladas com sutileza em poemas como “Os escritórios da mente” (Pg. 48) e outros que dizem muito dessa nova voz da poesia contemporânea da Paraíba. E tudo isso é apenas o começo.