Quebra-gelo

Morei em Brasília quando adolescente, em meados dos anos 70 e o acaso me fez estudar num colégio, cuja maioria dos alunos eram filhos de militares. Eu morava longe e sendo popular na escola, frequentemente ia almoçar na casa de quase todos os colegas. Eram gentis, educados, generosos, e eu não sabia que havia repressão e ditadura política. Havia na TV a frase “este programa é liberado pela Censura Federal”. A novela “Roque Santeiro” (1975) foi proibida pela censura, e houve certa vez um rumor sobre o “sumiço” de um Professor de história, acusado de subversão. Voltei à Paraíba e comecei a entender a situação, quando os cabeludos motoqueiros eram mal vistos e perseguidos pela polícia.

Relembro positivamente do retorno à luminosa Felipéia de Nossa Senhora das Neves (eu via João Pessoa como uma fazendinha à beira-mar). Havia Matinês no Cinema de Arte no ex-Hotel Tambaú, aulas no Teatro Piollin (dramaturgia e shows de MPB, sob o comando do genial Luís Carlos Vasconcelos). Relembro o deleite do surf e frescobol, iniciação na boemia, os célebres bares “Maravalha” (depois “Opção”), “Motokar” e “Bar da Xoxota”, e dos “assustados” nas casas dos “modernos professores estrangeiros”, matizes da contracultura nas “terras tabajaras”. Era o tempo do “desbunde” (uma resposta necessária quando a moralidade era tóxica, e havia repressão e ditadura). Tempos difíceis, violência, medo, perdas e danos, mas também ganhos, tempos gozosos, criativos, musicais, dançantes, e processos de descobertas, transformação e autoconhecimento.

Décadas depois, recordo das aventuras na Baía Formosa e Praia da Pipa, no Rio Grande do Norte, quando ainda não havia a invasão dos turistas do mundo, a vida impressa a euro e tudo era harmonia entre os nativos, turistas, surfistas, roqueiros. Havia a sensação de êxtase na “vida alternativa”. Naquela época quase morri num bugre que derrapou na estrada e voou no espaço sem fim de uma noite estrelada. Remendaram minha carcaça e fui fazer prova de doutorado no Rio de Janeiro. Perdi. Era impossível concorrer com centenas de desempregados querendo uma bolsa de estudos na “Cidade Maravilhosa”. Pensei na frase de Beckett, em “Esperando Godott”: “Tente de novo, falhe de novo, falhe melhor”. Acontece que na próxima não falhei. Estava macambuzio, meio frustrado, “quase deprê”. Mas havia mandado um projeto para o Rio e outro para Paris (e nem lembrava mais). Eis que – de repente – a sensação de derrota se transformou em júbilo quando recebi Carta de Aceitação para o doutorado em Paris (Sociologia na Sorbonne) e de quebra ganhei bolsa de estudos por quatro anos. (Mas essa é uma odisseia particular que poderá ser narrada posteriormente).

Interessa agora transitar da esfera privada à esfera pública, examinando as experiências de perdas e ganhos, as negociações necessárias, as relações de poder que nos atravessam e nos interpelam. E focar o exercício do magistério em jornalismo, que não pode se desvincular das relações entre comunicação, poder, mídia, discurso, história e política. Logo, apontamos algumas etapas na história da vida pública e da política brasileira, entendendo que estas se vinculam com nossas histórias pessoais, com as histórias dos outros, os atores sociais, as personalidades públicas, passando pela história das perdas, ganhos e negociações na espessura do mundo vivido.

Reflexões sobre a Vida privada e a Vida Pública

A história da vida privada não se perfaz separada da vida pública, há sempre intersecções fundamentais entre ambas. A longa noite do regime militar no Brasil (1964-1984) teve efeitos nas existências individuais e coletivas. Gerou dor e sofrimento, mas também evolução em cada ato de coragem e enfrentamento. Mas naquele tempo, como dizia McLuhan, “os meios eram as massagens” e a vida era cor de rosa na tela da televisão.

Mais tarde, já no DAC, no Curso de Comunicação, UFPB, fui entendendo que há as nossas histórias individuais e as histórias dos outros, ambas têm importância por tudo que encerram de ascensões, quedas, subidas, descidas, derrapagens, outras quedas e novos recomeços. Assim, mais amadurecido voltei à Brasília para o Mestrado em Comunicação (1984), cujas linhas de pesquisa eram Mídia e Política, e Comunicação e Linguagem.

Lembro da batalha e entusiasmo nacional durante o processo das Diretas-Já, mas perdemos: a emenda Dante de Oliveira foi derrotada. Porém “aceitamos” a proposição do “candidato de centro” Tancredo Neves, que faleceu às vésperas da posse (21.04.1985). Foi uma grande perda. Ascendeu ao poder, então, o vice-presidente José Sarney (1985-1990), “ex-parceiro ideológico dos militares”, que proibiu o filme ‘Je vous salue Marie’ (Godard, 1985), versão atualizada da história de Nossa Senhora. Além da censura, sua gestão foi marcada pela campanha dos “Fiscais do Sarney”, quando as maquinetas remarcavam diariamente os preços nos supermercados, na maior inflação do Brasil (45% ao mês). Entretanto, em 1988 foi promulgada a nova Constituição Brasileira, com matizes nitidamente progressistas. Logo, houve o sentimento de ganho e avanço na vida pública.

Prosseguindo na história da vida sociopolítica brasileira, atravessada por ascensões e quedas inenarráveis, eu já era professor, durante a disputa Lula x Collor pelas eleições presidenciais (1989). Ficamos tristes pela derrota de Lula e irados pela intervenção da Rede Globo, que editou o debate na TV em favor de Collor, então “dono” da filial da Globo, em Alagoas. Relembremos, no primeiro ato, o Plano Collor: a limitação dos saques bancários e o confisco das cadernetas de poupança. O filme “Terra Estrangeira” (Walter Salles & Daniela Thomas, 1989) mostra poeticamente uma dona de casa que morre infartada ao perder suas economias no confisco da poupança. Em verdade, foram vários os prejuízos materiais e psíquicos em todo território nacional.

O impeachment de Collor (1989), acusado de malversação de fundos, além de uma série de fatos macabros, acusações, brigas e morte em família, e o assassinato misterioso de PC Farias (tesoureiro de Collor e acusado de sonegação fiscal e falsidade ideológica), em 1996, junto com sua parceira numa praia de Alagoas. Há que se lembre o caos da inflação no governo Collor, que chegou a 1.972% ao ano (1989).
Líamos sobre tudo na mídia mundial, inclusive o protesto dos cara-pintadas “influenciados” pela série Anos Rebeldes, da Globo, como se o princípio da ficção norteasse o princípio da realidade. Na época, me informava com o amigo Wellington Pereira, também aluno no doutorado da Sorbonne e fazia uma tese acerca da cobertura da revista Veja no caso Collor, e eu estudava televisão. Era claro o sentimento de desolação nacional pelo impeachment do 1º Presidente eleito em sufrágio universal. Mas havia sobretudo a sensação de vitória popular na deposição do falso “Caçador de Marajás”.

A imagem pública do Brasil me parecia um barco à deriva, com altos e baixos. E assim a história segue, em meio aos sonhos, frustrações e a esperança em dias melhores.

Na disputa das eleições presidenciais de 1994, Fernando Henrique Cardoso venceu Luiz Inácio Lula da Silva. Dentre os seus feitos positivos, o fim da hiperinflação e a criação de programas sociais pioneiros, como o bolsa-escola, o vale gás e o bolsa-alimentação. Mas sob a égide da globalização, seguimos à deriva dos países ricos, sem investimentos internos e fazendo apostas arriscadas nas privatizações. O neoliberalismo ali se intensificou, mas só sentiríamos seus efeitos amargos nas gestões de Temer e Jair Bolsonaro, que desmancharam as conquistas sociais legadas pela constituição de 1988.

As gestões do PT, com Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011–2016) alimentaram as esperanças das classes trabalhadoras durante 13 anos. Mas a sensação de emancipação e prosperidade, geradora de afetos afirmativos no contexto do pacto sociopolítico prevalente, veio a ser abalada com o golpe político, jurídico e midiático contra Dilma Rousseff, em 31.08.2016, uma noite macabra que durou seis longos anos.

A gestão do golpista Michel Temer (2016-2019) se deu sob o signo do terror, tristeza, indignação e desesperança. Além do sentimento coletivo desalento, pela traição, usurpação e execução de uma série de práticas nefastas à população, como a reforma trabalhista e o desmantelo dos direitos sociais conquistados na constituição de 1988.

Nesse caso, aplica-se o adágio popular pessimista: “nada é tão ruim que não possa piorar”. A eleição e governo de Jair Bolsonaro (2019–2022) foram os anos de maior retrocesso na história da República Brasileira. Junto com o seu séquito ministerial diabólico, tornou o cenário brasileiro uma terra arrasada, no que respeita a todas as pautas sociais. Como se o mau-agouro de uma gestão fascista não bastasse, fomos assolados pela pandemia do coronavírus, COVID-19, com mais de 700 mil vítimas fatais. E essa experiência se tornou mais dolorosa e insuportável ao sabermos que muitas mortes poderiam ter sido evitadas se o governo Bolsonaro tivesse tomado as medidas necessárias.

A Filosofia, a Ética e a Filosofia Espontânea dos Jornalistas

O “ato de fala” é uma expressão feliz porque traduz um sentido de autonomia e libertação. O poder de falar, o poder-dizer, atua como alavanca de passagem ao saber-fazer. São instâncias positivas na Teologia, Psicanálise, Ciência Política, Magistério e Jurisprudência, e assim deve ser na seara jornalística. Refiro-me ao exercício do pensar-falar-e-agir relacionado à verdade factual e sua irradiação na esfera pública. E isto é importante de sublinhar devido ao conluio atual entre as mídias e os políticos golpistas.

A questão que se coloca para as mídias corporativas é como exercitar a superação diante da perda nas eleições para a esquerda e escapar da armadilha do ressentimento. Mas a política brasileira é pródiga no quesito do ressentimento. Relembremos os casos conhecidos de Aécio Neves, Eduardo Cunha e Bolsonaro, e o mesmo se pode dizer acerca dos donos das mídias golpistas, Globo, Veja, Folha, Estadão, Record, SBT, Fox Brasil.

Defendo aqui a necessidade de se refletir sobre os políticos profissionais e sobre os empresários das mídias, pois são atores sociais, cujas especificidades são similares àquelas do homem comum, que por sua vez é também parte da espécie de homo politicus.
Há, nesse itinerário, componentes ligados à formação da personalidade, do caráter e às desordens de cunho narcisista. Há aí um complexo de relações que passam pelo crivo do psicológico – no que respeita ao saber-perder sem ressentimento. Penso em Foucault, explorando a “ética do sujeito”, a “produção da subjetividade”, “o cuidado de si”, a escolha do “estilo de vida” e a “coragem da verdade”.

Trocando em miúdos, falo da arte de se orientar no pensamento, por meio de uma ética (como arte da conduta diante do outro). Penso, de um lado, na “legiferância” das regras sociais, a tirania dos discursos de poder, e por outro lado, na potência do agir, optar, fazer escolhas e decidir eticamente. É claro, há aqui ressonâncias de Nietzsche, Spinoza e outros pensadores que ousaram se rebelar no pensamento e no coração.

Relembro nesse sentido o livro “A Batalha dos Renegados” (1982), do jornalista paraibano Walter Galvão, na lítero-filosofia do romance “Nem morrer é remédio” (2012), do professor Hildeberto Barbosa Filho, e na licença poética da canção de Belchior “O ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. E por acaso, enquanto escrevo, entra na programação da TV o filme “Retratos da Vida” (Claude Lelouch, 1981), uma obra exitosa e dedicada aos perdedores.

É um filme grandioso, uma bela superprodução francesa, prosaico e até certo ponto melodramático, encarando um tema trágico (a ocupação nazista em Paris), e que serve de contraponto à eticidade perversa estadunidense, que divide o mundo – de modo maniqueísta – entre ganhadores (os ricos) e perdedores (os pobres), sendo que estes últimos são motivo de desapreço e zombaria. Ainda bem, “O Cinema Pensa” e rebate essa anomalia, como mostra o filme canadense “O declínio do império americano” (1986).

A Caixa de Pandora na Idade Mídia

Convém refletirmos sobre o saber-perder sem ressentimento e a estratégia de avançar novos processos de tentativas ancorados na coragem de criar orientada para o êxito. A história da política brasileira tem sido atravessada pelo afeto triste e abjeto do ressentimento. Entretanto, no vasto espectro simbólico da mitologia, a lenda da Caixa de Pandora traz consigo insights instigantes também para pensarmos as “sombras, sobras e surpresas” (JMB), que assolam a instância da vida privada e também da vida pública. Relembremos que a Caixa de Pandora, quando aberta, libertou todos os males sobre a terra, mas no fundo uma criaturinha permaneceu, a esperança.
A posse de Lula, em 1º de janeiro de 2023, pode ser entrevista nesse contexto. Se pensarmos no mito da Caixa de Pandora, os males do mundo teriam sido libertos para assombrar a nação Brasileira durante a gestão Bolsonaro, mas a vitória de Lula traria aos trabalhadores bons presságios e a esperança em dias melhores.

Basta examinar a escolha dos Ministros de Estado do Governo Lula e os compararmos ao staff sinistro da gestão anterior, logo sentimos a passagem de um período de perdas para outro, pleno de ganhos e a promessa de reconquista dos direitos sociais.

Todavia, cumpre lembrar o contexto político atual, a gestão e mediação desequilibrada das mídias corporativas. Essas mídias exercem agressivamente a liberdade de empresa, em detrimento da liberdade de imprensa. E estendendo essa constatação, percebemos que – impulsionadas pelas vicissitudes neoliberais, de que fazem parte – essas mídias se tornaram corporações preocupadas unicamente com a rentabilidade dos seus associados. Não querem direitos, mas sim privilégios. Veem a gestão pública como negócio, são adversárias de uma gestão empenhada em reinserir o social no seu projeto de governabilidade. Há o caso esdrúxulo do parlamento: o Congresso Nacional, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal abrigam homens públicos movidos – em sua maioria – por interesses privados, para quem os eleitores são clientes, não cidadãos, e se opõem ao governo empenhado no princípio democrático, cidadania e inclusão social.
Por outro lado, há as mídias independentes, como o Portal Brasil 247, empenhado num projeto editorial atento à razão democrática e sensível às causas sociais, logo um vetor de otimismo, elevação da autoestima dos cidadãos-e-leitores, telespectadores. Há, portanto, um índice de ganhos e perdas nesse pacto político-editorial, mas há a aposta diária na transformação da crise em oportunidade.

Cada um dos jornalistas progressistas e cada um dos ouvintes-telespectadores diariamente se comprazem no enfrentamento das falas, discursos e falsidades dos ressentidos, perversos e raivosos da política, do parlamento e do gadanho conectado na sociedade midiatizada. Por essas e outras, apostamos na coragem da verdade dos atores sociais progressistas que enfrentam a sórdida disseminação das fake news e da desinformação cotidianamente. Quanto a nós, prosseguimos reunindo força e coragem para enfrentarmos as perdas, sem ressentimento, engajados num projeto de “felicidade do jardim público”, como escrevia Voltaire.

 

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Diário de Vanguarda