
Existem as estrelas (e celebridades) do cinema e da TV e os melhores atores da grande arte da teledramaturgia. Daniel Craig (nascido em 1968) é um ator britânico, veio do Teatro (EUA e Reino Unido) e se tornou famoso mundialmente ao interpretar o personagem James Bond por 15 anos (2006-2015). Fez Cassino Royale (2006), Quantum of Solace (2008), Operação Skyfall (2012) e Sem Tempo de Morrer (2022). Os jovens e veteranos fans da saga 007 conhecem e seguem todos os títulos: adrenalina, imagens impactantes e diversão garantida com o maior espião de todos os tempos.

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Daniel Craig fez aparições importantes nos filmes Elizabeth (1998), Lara Croft – Tom Raider (2001), Estrada da perdição (2002), com Tom Hanks e Paul Newman, Os Invasores (2007), As aventuras de Tim Tim (2011), Star Wars (2015). Trabalhos em diálogo com as narrativas clássicas, filmes de aventura, estética dos quadrinhos (graphic novel), linguagem POP e multimídia atrativos para as plateias diversificadas.

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Daniel Craig é um mega ator que estrelou filmes de arte como O Amor É o Diabo: Estudo para um Retrato de Francis Bacon” (John Maybury, 1998), com os icônicos Derek Jacobi e Tilda Swinton. Mostrou ali como um heterossexual, casado duas vezes – com Fiona Loudon (1992-1994) e Rachel Weisz – a protagonista de “A Múmia” (desde 2011) e pai de dois filhos, que não tem medo de fazer papel de um homem gay.
Sinopse: Na década de 60, o ladrão George Dyer (Craig) invade o estúdio do iconoclasta pintor britânico Francis Bacon e é convidado para dormir com ele. Os dois se tornam amantes, com Dyer no papel de dominador. Bacon fica atraído pela inocência de Dyer e apresenta-o aos seus amigos. Dyer sofre de depressão, problemas com álcool e pesadelos. O sucesso de Bacon aumenta e Dyer se torna cada vez mais perdido e viciado em drogas. Dyer tenta suicídio por overdose de drogas. Bacon fica sozinho no apartamento em Paris, contemplando como era quando Dyer ainda estava vivo.

Foto Francis Bacon. Google Imagem. Quadro de Francis Bacon. Wikipedia
Primeiramente, ninguém fica impune às imagens do pintor Francis Bacon, que inspirou o filósofo francês Gilles Deleuze a escrever o livro Lógica da Sensação (1981). Suas imagens são fragmentos de corpos distorcidos, deformados, que buscam representar os objetos da percepção e da sensação. Uma frase para designar as séries de imagens do filme O amor é o diabo – Estudo de Francis Bacon poderia ser “Gente normal não tem nada de excepcional”. E o excepcional tem a ver aqui com isso: a dimensão rara, singular, extrema e extraordinária dos seres humanos e da vida vivida.

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Depois há aqui uma predisposição para mostrar o indizível, o invisível, a sensação de prazer, de dor, os instantes de euforia, flashes de felicidade e arrebatamento orgiástico, imagens fugidias do homo sapiens-ludens-demens, em que se exibem a sabedoria, o lúdico e a parte de demência/irracionalidade das criaturas humanas. Então, eis um esforço de captura do “vivo do sujeito” (Morin), “muito além do bem e do mal” (Nietzsche), o sujeito em sua experiência de penúria, solidão e despedaçamento, mas também radical realização dos desejos, perigosa plenitude na busca e encontro com a alteridade do Ser, o que implica igualmente na experiência limite do (des)encontro marcado com o Outro.
Enfim, relembrando a versão brazuca da canção “Mar de Rosas” pela banda The Fevers, o refrão “Eu não te prometi um mar de rosas” cabe aqui como uma luva. Nada mais adequado para traduzir a “lógica da sensação” nas pinturas de Bacon, as ligações homoafetivas entre os personagens no filme “… Estudo de Francis Bacon” e também o (des)encontro marcado no filme Queer, estrelado por Daniel Craig.
Esse filme concedeu a Daniel Craig o prêmio de melhor ator pela prestigiosa National Board of Review (2024) e lhe valeu para outras indicações a prêmios internacionais.
Sinopse: Queer é um filme de drama e romance histórico de 2024 dirigido por Luca Guadagnino a partir de um roteiro de Justin Kuritzkes, baseado no romance de William S. Burroughs (1985). Ambientado na Cidade do México dos anos 1940, o filme acompanha um expatriado americano rejeitado (William Lee / Daniel Craig) que se apaixona por um homem mais jovem (Eugene Allerton / Drew Starkey). [Wikipedia]
Para iniciar uma abordagem do filme Queer, eu lembraria de um pequeno letreiro que encontrei numa livraria alternativa na Praia da Pipa – RN, com a frase seguinte “Em caso de dúvida não entre”. Pois este é um filme para os espíritos abertos, para gente de personalidade forte e “cabeça feita”. Ou seja, “onde os fracos não têm vez”. (sic)
A película é forte em sua estranheza, se considerarmos a estética, o conteúdo, os clichês e a previsibilidade dos filmes normatizados de Hollywood, os produtos do broadcast, as representações das histórias e relações humanas no cinemão comercial.
Em boa hora, na época do neofascismo, cultura do ódio, cancelamento, racismo e exclusão social, quando o Presidente dos EUA propaga seu projeto de erguer o gigantesco muro na fronteira entre os Estados Unidos e o México, o filme abre uma grande janela dando visibilidade ao México dos anos 40, resgatando o imaginário utópico, outsider e comunitário dos beatniks dos anos 50 e traz ninguém menos que William Burroughs, um dos ícones da contracultura norte-americana, que precedeu os hippies dos anos 60/70. O filme faz uma adaptação de um dos seus romances “autobiográficos”.
O personagem William Lee flana pela cidade do Mexico, bebendo de bar em bar, buscando rapazes jovens para suas aventuras amorosas, até que encontra outro solitário em condições similares, o ex-soldado Eugene Allerton. Este, em princípio, recusa seus avanços (preferindo a companhia de uma jovem mulher), esquiva-se, mas termina por ceder às propostas de Lee. E depois de uma primeira experiência, aceita viajar com Lee para a Amazônia colombiana, na América do Sul, onde este pretende encontrar uma Dra. “Sacerdotisa” que conhece os efeitos misteriosos e místico-alucinógenos da planta Ayahuasca, tão bem conhecida nos rituais de cura xamânica dos índios.
Em verdade, Lee deseja conhecer a experiência da telepatia através das alucinações provocadas pela ayahuasca. Há uma frase de contornos poéticos dita por Lee para Allerton: “Desejo conversar com você sem palavras”. Ou seja, almeja estabelecer uma comunicação sensorial no coração da floresta, algo compreensível apenas para queles iniciados em uma outra forma de interação, por meio de uma abertura das “portas da percepção” como conhecem os leitores dos livros de Carlos Castaneda, como “A erva do diabo” e “Os Ensinamentos de Don Juan – O caminho para o conhecimento dos antigos Xamãs Yaqui” (ambos de 1968), onde encontramos os maravilhosos ensinamentos do índio Dom Juan e as experiências com o peyote, mescalina, e outros alucinógenos.
Aqui se trata de um resgate da experiência místico-religiosa que de algum modo se perdeu a partir do uso desmesurado das drogas no contexto do materialismo capitalista da sociedade de consumo pós anos 60/70, e que é relembrada no romance de William Burroughs
O filme Queer traz em um primeiro plano a experiência homoafetiva entre dois outsiders (que vivem à margem do sistema burguês-patriarcal), mirando o encontro-confronto sexual entre dois homens, um mais maduro e decidido (Lee / Craig), envolvido com álcool e drogas, e um outro mais jovem e meio indeciso quanto à sua orientação sexual (Allerton / Starkey). Ambos envoltos numa circunstância de solidão abissal, habitando as margens do “terceiro mundo” no pós-guerra mundial, que se aventuram em uma dupla viagem: uma busca de si mesmo em um mundo violento, pobre e sem perspectiva, e a procura de outra realidade para viver no pós guerra.
Há uma cena no início da trama, quando Lee persegue Allerton pelas ruas da cidade e se desenrola uma violenta briga de galo e vários homens apostam em volta da chacina das aves em disputa. Suas relações são mostradas de maneira crua e nua, as câmeras são indiscretas (mesmo sem nu frontal), mas como escreveu Arnaldo Jabor (sobre “Brokeback Mountain”), encena-se na tela a “fome do outro”. Em Queer assistimos ao embate físico dos corpos masculinos, que relembram a disputa dos dois machos nus no excelente filme Mulheres Apaixonadas, direção de Ken Russell (1970), adaptação do romance de D.H. Lawrence, com os gigantes Oliver Reed e Alan Bates e as grandes Glenda Jackson e Jennie Linden.
Há beleza, ternura e simbiose afetiva em um contexto impossível, numa terra de brutos. Raramente o cinema mostrou a atração e a recusa entre os corpos nos espaços de intimidade, tratados poeticamente, sem véus, com uma ética-estética da sinceridade.
A outra viagem, mais profunda, abismática, visceral, ocorre na selva amazônica; certamente essa é a parte mais catártica do filme. Eles adentram quase no “Coração das Trevas” (Joseph Conrad), no sentido de penetrar na mágica natureza selvagem e enfrentar a outra face da natureza mortífera.
Ao chegar frente à cabana para encontrar a Dra. Cotter, a índia / sacerdote que prepara a poção de ayahuasca, deparam-se com uma gigantesca serpente (uma metáfora forte para ilustrar o contexto) e que guarda a “casa da bruxa”, impedindo que os ladrões roubem a sua “pesquisa” e façam usos ilícitos de suas descobertas (como o controle das mentes pelos militares russos e norte-americanos). No interior da cabana, uma grande preguiça se pendura e se move pendurada nos caibos e parece assustadora.
A médica e seu parceiro os recebem, oferecem-lhes a substância e então eles provarão as experiências sensoriais profundas. “Depois da porta aberta, não há mais volta”, diz a índia. E aí, na tela se vê algo só possível na transmutação da literatura para o cinema. Eles vomitam seus corações que pulsam vivos no chão da floresta. Os espíritos libertam-se dos corpos e literalmente desaparecem e reaparecem sob o efeito da substância. Nesse sentido, o filme recupera fidedignamente a tradução da experiência de abertura das portas da percepção inscrita nos romances dos beatniks. Algo que devem conhecer apenas aqueles que experimentam as drogas psicodélicas, os alucinógenos, como num ritual místico-religioso das comunidades ancestrais.
Os corpos se fundem, mesclam-se, entrelaçam-se, mas já não se trata de uma relação sexual; aqui se misturam as sensações corpóreas e psíquicas, físicas e mentais.
Entram em sintonia com o espírito da floresta, uma viagem profunda, comunhão cósmica, como um ritual antigo dos povos primitivos, cujo sentido só pode ser captado pelos iniciados. O exercício da telepatia, a comunicação sem palavras almejado por Lee se realiza completamente. Até a exaustão, o repouso, o adormecimento de corpo e alma dos viajantes. Depois, a feiticeira lhe diz para ficarem mais tempo e prolongarem a experiência mística. Mas decidem ir embora. Um talento à parte cabe ao desempenho fantástico da índia colombiana. Sem fazer caras e bocas, mas com extraordinária expressão visual, gestual e corpórea, a atriz Lesley Manville, como a Dra. Cotter, quase rouba a cena.
Antes de partirem Lee tem outra visão, da cobra que engole a cobra, um “oito deitado”, símbolo do infinito. Assim, o filme-texto é repleto de signos que apontam para uma experiência existencial mais plena, um modo de transcendência possível, uma outra forma de vida. O filme é forte também por isso. Aponta para imagens e rituais de iniciação, uma viagem para além do ego, para além da mera existência física e material.

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A tecnologia das imagens do cinema faz o corte, e há uma elipse magnífica: a câmera mostra Lee caindo do céu, em pé, já de volta ao México. Allerton vai embora. Lee retorna à cidade do México outra vez, mas nada ali será como antes. Depois ele reaparece já envelhecido, solitário no quarto, relembra do amigo, do passado, das aventuras ali no México, das viagens místico-alucinógenas. Em devaneio imagina uma cena de Guilherme Tell, onde Allerton coloca um copo de tequila na cabeça e Lee atira no companheiro (referência a uma ocorrência real: Burroghs, o autor do livro, sem querer, matou a esposa em circunstância similar). Uma última metáfora. Imaginação complexa do Eros e Thanatos. E o filme assim se conclui. Aplausos e admiração por essa primorosa atuação de Daniel Craig, que ganhou prêmios ali, acolá, mas ainda não teve o reconhecimento merecido.

Claudio Paiva
Professor Titular - Departamento de Comunicação - UFPB. Mestrado e doutorado em Sciences Sociales - Universite de Paris V (Rene Descartes).