Henrique Magalhães, criador da famosa personagem Maria - Foto: Divulgação

Nós fazemos parte de uma turma que se formou entre a ‘Geração AI-5’ (assombrada pela violência, censura e repressão sexual, anos 60/70) e a ‘Geração Coca-Cola’ (do consumismo, enlatados, indústria cultural, cunhada por Renato Russo), e ingressamos na UFPB, entre o fim dos anos 70 e início dos anos 80, a ‘Geração Inconformista’ nos tempos da abertura política.

Eu me lembro de João Pessoa, nos anos 80 (ainda uma ‘fazendinha à beiramar), da mítica Sala Preta no DAC, Departamento de Arte e Comunicação da UFPB, da peça queer irreverente ‘Soy Loco por ti Latrina’ (Texto de Paulo Vieira e Direção de Antonio Cadengue, 1980), do Teatro Lima Penante, dos shows musicais na arena do criativo Teatro Piollin (Luiz Carlos Vasconcelos), do revolucionário ‘Bar da Xoxota’ (na Praia de Tambaú), da “batalha dos renegados” no jornalismo inteligente (de Walter Galvão), além de Carlos Aranha etc etc. O incrível Movimento do Cinema em Super-Oito (UFPB): Pedro Santos, Jomard Muniz de Britto, Pedro Nunes, João de Lima Gomes, Bertrand Lira, Lauro Nascimento, Vania Perazzo, Elisa Cabral, Torquato Joel, Marcos Vilar e também Henrique Magalhães, autor do curta ‘Era vermelho o seu batom’ (1983), dentre outros apaixonados por Cinema.

Lembro dos shows dionisíacos de Elba Ramalho, Cátia de França, Dida Fialho, Ivan Santos e Tadeu Mathias, do Grupo Água, Gil, Caetano, e Rita Lee, dentre outros, que revitalizaram nossos ‘verdes anos’. Lembro igualmente das aulas pop-filosófico-tropicalistas de Jomard Muniz de Britto, do musical Projeto Pixinguinha e dos filmes de arte no Cinema do Hotel Tambaú, que atiçaram nossas razões e sensibilidades. Relembro do Movimento Feminista e do atentado-bomba (sem vítimas) na casa da Profa. Eleonora Menecucci. Relembro do Movimento Estudantil, do Congresso da UNE, da LIBELU (Liberdade e Luta), da ‘pedagogia da autonomia’ (de Paulo Freire), da pauta da Luta de Classes, do enfrentamento do racismo. Relembro igualmente o ‘Nós Também’, o primeiro Grupo Gay da Paraíba (canal de desrepressão, esclarecimento sobre a AIDs e direitos civis). O reconhecimento dos Direitos dos povos originários, nas aulas, livros e filmes. Inclusão dos idosos (os ‘corações veteranos’), da liberação dos divorciados, e dos cidadãos com necessidades especiais. Do tempo redescoberto nos “paraísos artificiais”, êxtase saudável do vinho, cachimbo da paz e caipirinha. Como diz Edgar Morin, “a cabeça bem feita”: com a alquimia da Yoga, meditação, acupuntura, medicina alternativa, tarô, astrologia etc. Para nós, ali então, um pouco atrasadas com relação ao resto do mundo, as utopias estavam em marcha. Vivíamos à procura de saídas em tempo difíceis, na busca de uma ecologia mais equilibrada, os prazeres da comida natural. Uma estética da carnavalização: doce subversão e poética das paixões amorosas nas praias, bares, “assustados”, música, dança, cinema transcendental. Longe das sombras de Reagan, Tatcher e da globalização.

Recordo das imagens do protesto, passeatas e manifestações dentro e fora da UFPB. Imagens da Paraíba inteligente, algo difícil de se imaginar nos tempos das bolhas virtuais, narcisistas e odiosas do século XXI; mesmo que haja sempre flashes da pulsão de vida, poética sensível e inteligente nas experiências cognitivas, estéticas e vivenciais das novíssimas gerações.

Parafraseando o filósofo Walter Benjamin, A verdadeira imagem do passado é uma imagem dialética, que surge em momento de crise, como lampejo e resgata um instante de verdade. É uma imagem revolucionária que retorna no presente cotidiano, como “imagem sobrevivente”, altiva e lúcida, promessa de liberdade e emancipação. Trata-se de uma iluminação recorrente para nos atualizar e nos orientar nos tempos sombrios.

Nesse contexto se inscreve a produção alternativa, sensível e criativa de Henrique Magalhães, Prof. Dr. em Sociologia, ativista da Mídia e Comunicação (no Brasil e Portugal), Escritor, editor independente, chargista e contador de histórias em ‘Bandas Desenhadas’, criador da personagem Maria, no extraordinário universo dos Quadrinhos. A criação de Maria (1975) nasceu com um caráter político e contestador. HM publicou o fanzine Marca de Fantasia (1985-1988), criou a Gibiteca Henfil (1990). Magalhães teve influência da revista Fradim (Henfil) e dos livros de Mafalda (Quino), além dos quadrinhos de Edgar Vasques (Rango) e gibi de Marge (Luluzinha).

A maior dificuldade do que chamávamos de “esquerda”, dos sujeitos e grupos progressistas, militantes e engajados na luta pela justiça social era o problema da Linguagem. Ou seja, transformar a pulsão criativa do espírito rebelde, transgressivo e inconformista, em palavra, discurso, imagem e significação sem mágoa, sem raiva, sem ressentimento. Repensando a célebre frase atribuída a Che Guevara, o desafio foi e ainda é: “Endurecer o espírito sem perder a ternura jamais”. E a saída tem sido pela arte do cômico, do fazer rir. Não rir do outro, mas rir com o outro, aprender a rir de si próprio. Logo o riso e o siso sempre foram a marca registrada da narrativa de Maria.

“Sem charme intelectual, nem abissal”, Henrique Magalhães é Mestre em Comunicação pela USP com a dissertação ‘Os fanzines de histórias em quadrinhos: o espaço crítico dos quadrinhos brasileiros’ (1993), e ‘sociólogo’, ele é Doutor pela Universidade Paris VII, com a Tese ‘Bande Dessinée: rénovation culturelle et presse alternative’ (1995).

O Professor Henrique Magalhães é autor dos livros acadêmicos: O que é Fanzine (1993), O rebuliço apaixonante dos fanzines (2003) e Humor em pílulas – A força criativa das tiras brasileiras (2022).

Das palavras do professor-escritor-ator-diretor de Teatro Paulo Vieira, na apresentação do livro Maria – 50 anos de Humor e Provocação, podemos vislumbrar o ‘espírito do tempo’ que regeu o imaginário da época:

“Eram tempos revolucionários. Tempos de abertura de consciência. Tempos difíceis, mas que adolescentes, bichas, padres e mulheres, como cantou Caetano Veloso, rompiam o coro dos contentes e apesar de toda repressão e mesmo contra o apoio das esquerdas tradicionais, faziam o carnaval, desbundavam para valer, éramos os que giravam na roda, Carmens Mirandas do nosso desejo, e Maria, a nossa expressão artística e ideológica”.

Paulo VIEIRA DE MELO. Maria (2025), pag. 10.

Cumpre lembrar. 1988 foi o ano da promulgação da nossa Constituição Cidadã, considerada avançada em seus matizes humanistas, alavanca básica e suporte jurídico para o engajamento nos movimentos sociais, orientados para a democratização, a cidadania e os direitos civis.

Entre aquela época e os nossos dias, como conta Paulo Vieira:

“Maria mudou com o tempo. Mudou o traço, mudou a prosa, mudou a temática, mudou muito, somente não mudou o profundo amor pela verdade e pela beleza de ser o que se é, independente do que seja, desde que seja a boa luta pelo bem, pela felicidade de amar, pela paz que deveria reger e regar os nossos corações”.

           Paulo VIEIRA DE MELO. Maria (2025), pag. 12.

Penso que Maria mudou para melhor, não envelheceu, muito pelo contrário, mantém-se jovem, atual e antenada no mundo multipolar do século XXI. Enfrenta as adversidades e crises recentes, como a “hipocrisia religiosa que atormenta a nossa democracia”, o retorno do conservadorismo de direita, os problemas ecológicos e ambientais.

A obra se tornou objeto de estudos acadêmicos, livros especializados e até inspirou vídeos documentários.

Destacamos aí o “ensaio lúdico” da Professora Nadja Carvalho, no livro Maria Strip… arrepiando na saia (2016) e da professora Regina Béhar, Eu sou Maria: humor e crítica nos quadrinhos paraibanos (2016). E igualmente o vídeo documentário Eu Sou Maria (Béhar e Matheus Andrade, 2017), além de outro vídeo Maria por Marias (com Karla Karini na direção e Adelcídio Soares, na edição, 2018), Departamento de Mídias Digitais, UFPB. Essas são apenas algumas das mil faces de Maria.

“Em 2024, por meio do Projeto da Deputada Estadual Cida Ramos, Maria tornou-se patrimônio Cultural Imaterial da Paraíba num prestigioso reconhecimento de sua Produção”.

In: Magalhães. Maria, 2025, pag. 12

O livro Maria – 50 anos de Humor e Provocação é importante pela permanência da coragem de criar, do seu autor, Henrique Magalhães, que reúne seus quadrinhos históricos, memoráveis e a produção mais recente, que atenta para as transformações recentes na seara social e política.

Trata-se de um “livreco” bom de degustar – principalmente por quem gosta e é fã das Histórias em Quadrinhos, que de algum modo representa um modo de produção elaborado de maneira lúdica, criativa e que instiga a pensar, o que não é pouca coisa na época da dita “inteligência artificial”. (A obra pode ser adquirida na Livraria da Editora da União (Espaço Cultural). Em tempo, convém destacar a atividade de Henrique Magalhães, em sua Editora Marca de fantasia, que permanentemente tem lançado não só seus trabalhos, mas editado diversos livros de vários autores com temática análoga: cf. https://www.marcadefantasia.com/

E, fundamentalmente, é prodigo ao recuperar uma ética-estética avançada, progressista, que enfrenta a onda regressiva, conservadora e reacionária que varre o planeta. Logo, é vetor de alegria, coragem e dotado de fina ironia, recorrendo ao riso que desmancha o mau-humor dos homens e mulheres travados, tristes e ressentidos. Relembro o psicólogo Roberto Freire, “Sem Tesão não há solução” (título do seu livro, de 1987). E essa é a substância que move Maria, o tesão de fazer e de viver, que reanima a libido dominante e que anda meio em baixa, na sociedade fisgada pelas Big Techs, fanatismo e desinformação. Logo, Maria permanece mais atual que nunca.