A maioria das pessoas olha para os casarões coloniais e vê unicamente seu valor de patrimônio histórico cultural e arquitetônico. Patrimônio de quem? De um povo ou de um grupo? Os herdeiros ou novos proprietários desses espaços veem neles, nos casarões, uma possibilidade de ganhar dinheiro. Há investimentos em rotas culturais, súplicas ao poder público por apoio financeiro, alegando-se que o retorno é promoção de emprego e renda locais. Eu tenho lá minhas dúvidas nesse retorno todo. Mas como minha impressão sobre isso é feita a olho nu, não devo me aprofundar na dúvida.
Vivo em uma cidade cujo área central é patrimônio histórico. Visitada por causa de seus sobrados e casarões antigos. Embora haja essa azaração toda sobre esses espaços de memória, há quem diga de seus pecados e algumas pessoas da localidade afirmam que não morariam nem de graça nesses ambientes. Deles dizem serem assombrados por espíritos violentíssimos (fantasmas de escravagistas), pelos cantos e danças, gritos e maldições de espíritos de gente que foi escravizada.
Sempre há um cochicho aqui e ali, rumores, um “ouvi dizer” de que estes lugares não são os melhores do mundo para se visitar ou habitar. Dizem de ranger de portas, dobradiças enferrujadas, passos de botinas em assoalhos de madeira, cheiro de bebida e fumaça de cigarros por entre as frestas de assoalhos em prédios velhos, antes casas de casas de famílias nobres ou bordéis famosos, transformados, na atualidade, em empreendimentos ou repartição pública. Morar é mais difícil. Por isso, alguns deles estão caindo aos pedaços, tanto aqui, como em outras partes do estado. Mesmo assim, as pessoas amam visitar, enaltecer e falar sobre seus velhos engenhos, casarões, sobrados coloniais e sobrenomes falidos. A meu ver, paira sobre tais lugares um espectro cruel enredando a memória de um povo.
Derrubam estátuas de ditadores, mudam nomes de ruas, falam de reparação histórica, mas continuam adorando casas e prédios, templos da exploração, das dores, dos abusos, dos sofrimentos, das misérias e da escravidão como se fossem símbolos de prosperidade e riqueza de um povo. Pouca ou nenhuma criticidade sobre espaços simbólicos da vergonha e do medo. Preferem atenuar esse discurso, concentrando o olhar, como disse antes, no valor arquitetônico, na cultura material, nos itens e acessórios que provam riqueza e ostentação auferidas pela tortura e pela exploração humanas.
Não. Por favor, não me tomem por alguém que despreza a memória. Não me basta apenas guardar a memória. Quero me perguntar sempre de qual memória estamos falando e preservando. Memória do que? De quem? Para que serve e a quem serve? Uma memória e uma história a serviço de quem se julga superior, uma história de falso glamour. Uma memória que invisibiliza à força, a resistência, a herança de outros grupos e os pinta como menores, menos importantes, como fracos e perdedores é uma história que não serve à maioria. Por mim, podem derrubar todos casarões velhos. Por mim, todo e qualquer velho engenho poderia ser esquecido e apagado da história, se ao invés de lembrarem quantas dores e horrores foram despejados em seus espaços, apenas elevam a memória de falsa grandeza daqueles que provocaram dor e horror.
Onde moro há esse costume de olhar para um centro histórico recordando muito mais de como famílias soberbas e infames exerceram domínio sobre a política, a economia e sobre as pessoas do povo. Famílias proprietárias de terras e velhos engenhos foram extremamente perniciosas à maioria da população. Contam-se como benfeitoras, veiculadoras de progresso e prosperidade, porém a população, o povo real e absoluto, vivia em casebres de palha e taipa, ruas de lama ou morava nas propriedades, levando surras dos donos de terras, formando imensos currais eleitorais e ainda sendo chamados de vagabundos quando fugiam da opressão, vagando de propriedade em propriedade, procurando patrão menos pior.
Que haja memória. Não uma memória travestida. Tetos enlodados, paredes espessas dividindo cômodos sombrios, pisos de terracota e grandes janelões dos quais falam as biografias dos senhores e senhoras com saudade do passado que os glorifica. E, sim, uma memória honesta, reveladora das lutas, da resistência, da cultura e da diversidade do nosso povo.
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