Há quem acredite apenas em cidades inventadas pelos discursos dominantes.
Sem querer sequer desconfiar que há outras cidades respirando por ai.
Os discursos carcomidos, presentes em biografias, em historiografia obsoleta, em fotografias de máquinas patronais, não dariam conta de interpretar as inúmeras cidades que desprezam.

Por isso o filme só mostra as altas fachadas e cria um centro de falso glamour, onde a história se resume a quem viveu se embriagando do suor e do sangue dos pobres.

Há quem reze a história de um grupo como se fosse a história de um povo inteiro.

Na periferia, o poder público não faz, tampouco reforma calçadas. A calçada do povo real é assimétrica, impedindo o passeio dos humildes.
Nas calçadas altas, vencidas somente pelo pulo das crianças, os idosos se encostam para fugir dos carros saltitantes sobre os buracos da rua.

Às vezes, onde seria a calçada, é feito um alpendre, sustentado com dois ou três arrimos de pau, fazendo sombra e convidando a vizinhança para a prosa do fim de tarde.

As calçadas são altas seguindo o terreno íngreme das encostas e ladeiras. Os muros baixos, o telhado com duas quedas d’água, uma porta, uma janela da frente – boca e olhos abertos – dando acesso ao lar não menos histórico, só menos historicizado.

Na periferia não tem praça nem monumentos aos seus homens e mulheres memoráveis.
São varais de roupas, plantas de chá e flores domésticas, cães e gatos, os enfeites de ruas e residências, nas quais pulsa a história da vida real.

Seu passado, embora ignorado por quem ocupa espaço de domínio, resiste e continua muito mais vivo e presente que as narrativas regadas de elitismo e menosprezo pela cultura do povo.



Por Tays Melo - é historiadora e escritora, ativista política e cultural na cidade de Areia/PB