As vozes chegam do alto. Vozes roucas, despatriadas de tudo. Submersas estão as suas casas, os seus pertences, a sua comida, e, seus corpos amontoados sobre os telhados, aprendem à força um novo jeito de se encolherem para estar no mundo.
Não, não me iludo. Eu não sei escrever sobre essa angústia, esse desespero, esse novo jeito de corpo que se encolhe, à busca de um lugar seguro. Um barco? Um abrigo? Um útero?
A chuva veio. Os rios cresceram. Pediram as cidades emprestadas para alargarem sua nova força. Os rios desalojaram as casas, espremeram-se por entre alicerces, tomaram posse de todos os espaços possíveis. Os rios, para além da destruição, são uma força bonita de se ver. Os rios, inundando o mundo dos homens, são uma mensagem retumbante, escrita pela grandeza das águas.
Os rios, de maneira enfática, nos contam a verdade. A verdade incômoda tantas vezes desviada pela inconsequência das políticas negacionistas, das políticas egocentristas, das políticas neoliberais, das políticas completamente divorciadas do bem comum.
O jornalismo também veio. Veio cobrir a força da inundação, veio ver de perto as águas da angústia, em olhos secos de desespero. O jornalismo largou suas tragédias pequenas do dia a dia, trouxe suas câmeras, seus microfones, seus celulares de última geração, para flagrar ao vivo, a angústia e os seus números. Terça-feira, noventa mortes, 130 desaparecidos, milhares recolhidos em abrigos, e as águas bradando sua mensagem retumbante.
A mensagem dos rios ecoa a voz do planeta em mudança. Em crise. O nome para essa transição é bonito, mas não existe mais em realidade. O “novo normal” foi uma metáfora de curta duração. Os rios nos contam: A força da reação do planeta é imediata e extrema. Não há mais um lugar seguro. Viveremos de sustos e tragédias.
Os políticos escutam a fala dos rios e encolhem os ombros: “Não. Não pode ser. Amanhã será outro dia”. Os jornalistas escutam a fala dos rios, olham de lado e pensam: “Não. Não pode ser. Amanhã será outro dia”.
Nas cidades secas, livres das inundações, os humanos seguem suas rotinas e pensam, enquanto bebem café em suas casas ou nas padarias: “Não. Não pode ser. Tudo vai voltar ao normal”. Os rios falam. A terra fala. A atmosfera sopra, o sol aquece a grande narrativa de um planeta em curto. Sim, o mundo está em curto. Mas os políticos, os chefes de governos, os donos do capital usam tampões de ouvido para não escutarem os alertas esganiçados dos cientistas, a voz grandiosa dos rios. “Não, não pode ser. Amanhã será outro dia”, pensam, enquanto nos seus gabinetes refrigerados, dão sequência aos seus atos de egoísmo, de inconsequência, de corrupção.
Não. De verdade, não sei contar sobre esse desespero, sobre esses olhos esgazeados, ressecados pela angústia. Não sei falar sobre essa fina franja de esperança que ainda se insinua dentro dessas vozes roucas que gritam por socorro. Há que se fazer silêncio. Há que se escutar a voz retumbante dos rios. Decifrar suas sílabas, emendar suas frases, rever o texto da dor que não pode ser flagrada por câmeras e microfones.
Há que se aprender a dura lição que inunda todo e qualquer lugar, numa afirmação peremptória: O planeta reage. O planeta esperneia. O planeta procura um novo jeito de ser, Planeta água? Planeta deserto? Planeta desenraizado? Não. Eu ainda não sei falar sobre isso. Por isso escrevo frases curtas, revoltadas, cheias de negação. Escrevo frases curtas, cheias de angústia, num diário de vanguarda, solo para essa crônica inundada de tristeza.
Ah se eu pudesse abraçar esse povo que sofre! Ah se eu pudesse romper o dique dessas reportagens tristes, ah se eu pudesse estar junto deles nos seus telhados, aprendendo sobre um novo jeito de corpo num mundo em curto-circuito.