Em três processos, a 3ª seção do STJ concedeu salvo-conduto em habeas corpus para permitir o cultivo doméstico de cannabis sativa para extração do óleo com finalidade medicinal.
Houve divergência entre os ministros, mas a maioria destacou recente jurisprudência do Tribunal sobre o tema, na 5ª turma, a qual privilegia o direito ao acesso à saúde, e permitiu o plantio da maconha para fins medicinais. Os ministros seguiram o voto divergente apresentado por Jesuíno Rissato.
Foi dado provimento aos agravos regimentais para concessão dos HCs pleiteados.
Os ministros, por sugestão da PGR Raquel Dodge, também decidiram oficiar a Anvisa e o Ministério da Saúde sobre a decisão.
No HC analisado (HC 802.866), o paciente requereu salvo-conduto para que seja autorizado a cultivar plantas de cannabis sativa em sua residência sem que seja incriminado pelo delito previsto na lei de drogas.
Em 1ª instância, a ordem foi concedida. O juízo constatou que ficou comprovada a necessidade do uso medicinal do óleo extraído da planta, especialmente porque o impetrante obteve autorização da Anvisa para importar o medicamento derivado da substância. Ressaltou, ainda, que o tratamento tem custo elevado, e não tem previsão de fornecimento gratuito pelo SUS. De outro lado, seria possível extração caseira do óleo, com custo reduzido e idêntica eficiência.
O Tribunal de origem reformou a decisão, denegando a ordem. O paciente, portanto, buscou o HC no STJ. Na 5ª turma, em junho deste ano, foi determinada a afetação do feito à 3ª seção.
Na análise do caso, o relator, Messod Azulay, votou por denegar a ordem, no que foi acompanhado por João Batista Moreira.
Mas a maioria dos ministros seguiu a divergência, inaugurada pelo ministro Jesuíno Rissato em voto-vista.
Voto condutor
Ao apresentar voto-vista, ministro Jesuíno Rissato recapitulou decisões do STJ sobre o tema. S. Exa. observou que já votou em processo semelhante denegando a ordem, e que a 5ª turma, na época, tinha esse entendimento, de que autorização para cultivo, colheita, preparo e porte de cannabis para fins medicinais dependeria da análise de critérios específicos e técnicos, cuja competência é da Anvisa.
Entretanto, na sessão de julgamento de 22 de novembro 2022, a 5ª turma mudou seu entendimento, em acórdão da lavra do ministro Reynado Soares da Fonseca, no qual, de forma minudente, foram analisados aspectos da questão, e o entendimento do colegiado alinhou-se, então, ao da 6ª turma.
Em junho de 2022, em acórdão paradigmático da lavra do ministro Rogério Schietti, a turma negou provimento a REsp do MP/SP e concedido a permissão para o cultivo pretendido. Ressaltou-se, na decisão, que “o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível, assegurada pela própria CF à generalidade das pessoas”. No caso do uso da cannabis para fins exclusivamente terapêuticos, não houve dúvida de que deveria ser obstada iminente repressão criminal sobre a conduta praticada pelos pacientes.
A partir deste julgamento, o ministro explicou que passou a decidir neste sentindo.
Por isto, no caso julgado na sessão desta quarta-feira, divergiu do relator, concedendo o HC, e restabelecendo decisão de 1º grau que concedeu o salvo-conduto.
“Penso que não seria, neste momento, oportuno e conveniente dar um retrocesso, uma marcha ré nesse entendimento, e uma mudança da jurisprudência da Corte em tão pouco espaço de tempo. Isso causaria até certa perplexidade nos aplicadores do Direito, que seguem a jurisprudência da Corte, e viria em prejuízo da própria segurança jurídica.”
Acompanharam a divergência os ministros Laurita Vaz, Sebastião Reis, Rogério Schietti e Antonio Saldanha Palheiro.
O entendimento foi estendido a dois outros HCs de mesmo tema.
No processo em que pôde votar (em um deles estava impedido por ausência na sustentação), ministro Joel Ilan Paciornik também acompanhou a divergência.
Votos
Ministra Laurita Vaz concordou com a divergência, e destacou: “Essa Corte é uma Corte de precedentes. Temos que ter o maior cuidado para zelar para a manutenção da nossa jurisprudência. Se não zelarmos, como vamos exigir que outros Tribunais sigam?”
Rogério Schietti, em seu voto, refutou pontos apontados pelo relator. Ele registrou, entre outros pontos, atipicidade formal e material da conduta, por entender que em nenhum momento se busca o plantio para uso recreativo, e que não há lesão ao bem jurídico tutelado, salientando que o plantio é para uso próprio e para fins medicinais.
Lembrou, ainda, que a própria Anvisa, ao proibir a importação de alguns componentes da cannabis, não condenou, e muito menos negou, o uso medicinal da cannabis, havendo reconhecimento do Estado brasileiro da potencialidade curativa e terapêutica dos produtos derivados da cannabis.
“Na medida em que essa conduta se volta para proteção da própria saúde do paciente, não há como, a meu sentir, encontrar tipicidade nos arts. Da lei 11.343/06”.
O ministro ainda disse que a confecção de remédios caseiros de produtos naturais com propriedades terapêuticas é milenar, e absolutamente corriqueiro no cotidiano das sociedades. Assim, propôs a seguinte reflexão:
“Enquanto o STF caminha a passos largos para reconhecer a inconstitucionalidade do crime de portal maconha para consumo pessoal recreativo, é de se indagar: é razoável que compactuemos com a responsabilização penal do paciente por pretender o cultivo da cannabis sativa com finalidade exclusivamente medicinal e amparada em prescrição médica?”
Ele ainda citou que o escritório da ONU sobre drogas e crimes (ONUDC) acolheu recomendações feitas pela ONU pela reclassificação da cannabis, e decidiu pela retirada da planta e da resina da cannabis do anexo IV da convenção única de 1961 sobre drogas narcóticas, a reinserindo na lista 1, que inclui outros entorpecentes como a morfina, largamente utilizada para fins medicinais.
“Constata-se, portanto, que a descriminalização do uso medicinal da maconha, e até mesmo recreativo, consiste em verdadeira tendência mundial, seguido pelos EUA, país marcado por haver inaugurado o que se passou a conhecer por ‘War on drugs’, guerra às drogas, no governo do presidente Nixon. Dos 50 Estados que integram a federação, 23 já autorizam o uso recreativo da maconha. 14 autorizam apenas o uso medicinal, e 7 legalizaram o uso do óleo de canabidiol. Somente 6 ainda criminalizam completamente a maconha.”
Segundo Schietti, o Direito Penal, ao longo de décadas, não mostrou quase nenhuma aptidão para resolver o problema relacionado ao uso abusivo de substâncias entorpecentes, e cumprir a finalidade de tutela da saúde, a que em tese se presta.
Com essas considerações, o ministro acompanhou a divergência, concedendo salvo-conduto ao paciente de modo que possa cultivar, tal qual reconhecido pelo juiz, 15 mudas de cannabis sativa para uso exclusivo e próprio, enquanto durar o tratamento a que essa substância visa a contribuir, ficando vedada doação e transmissão a terceiro da matéria-prima ou dos compostos derivados da erva.
Ministro Reynaldo Soares lembrou sua decisão anterior na qual impediu o plantio. No entanto, destacou, assim como o ministro Jesuíno, que após voto do ministro Schietti, entendeu que foi necessário evoluir na análise do tema na seara penal, privilegiando-se o acesso à saúde de todos os meios possíveis.
“O direito à saúde não é direito de alguns. Não é direito daqueles que têm poder econômico para importar. O direito à saúde é de todos.”
Ele lembrou que, desde 2015, a Anvisa vem autorizando o uso medicinal de produtos a base de cannabis sativa. “De fato, a Anvisa classificou a maconha como planta medicinal.” Para ele, o bem jurídico tutelado na lei de drogas é a saúde pública, o qual não é prejudicada pelo uso medicinal de cannabis sativa.
Ministro Saldanha Palheiro disse que tem acompanhado casos concretos que são de pacientes com comorbidades extremas, e que têm efeitos extremamente benéficos com a utilização do medicamento. “Tenho colegas, mais de um. Um desembargador do RJ, o filho com doença neurológica tinha cerca de 20 convulsões por dia, e nada curava. Foi aos EUA, tentou todo tipo de tratamento. E agora, com o uso do canabidiol, o menino teve uma melhora exponencial. Uma convulsão a cada 15 ou 20 dias. Ele importa o óleo porque tem dinheiro, mas cogita o plantio, porque é caro e trabalhoso.” O ministro citou casos de quimioterapia, com efeitos colaterais devastadores, têm melhora significativa. “Isso é direito à saúde, da maneira que é possível ser prestado”.
Ao final, o relator, ministro Messod Azulay, pediu a palavra para fazer observações sobre o tema. Ele afirmou que, apesar das falas dos ministros, a discussão presente não é sobre os efeitos do canabidiol, mas sim o plantio. Ele também destacou que a jurisprudência, embora consolidada, jamais foi levada à terceira seção. “Então, não sei se é uma jurisprudência tão consolidada assim.”
Disse, ainda, que, conforme afirmou em sabatina na CCJ do Senado, jamais praticaria ativismo judicial, por causar insegurança jurídica.
“Quer se transformar isso aqui numa Colômbia, plantando à vontade. A verdade é dura, mas é essa. Agora, quem vai fazer o controle? Na verdade, isso aqui já está quase uma Colômbia. Tudo aqui é controlado. A geopolítica do crime aqui hoje é dura.”
Processos: HC 783.717, HC 802.866 e RHC 165.266
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