Livro bom é aquele que surpreende. A boa leitura é sempre um tipo de turbulência entre a beleza e a dor. Tipo Sinfonia Pastoral, do André Gide. Todavia, prazer estético é algo indescritível e intransferível. Poucas frases, como essa de Roland Barthes, me definem enquanto leitor: “Eu me interesso pela linguagem porque ela me fere ou me seduz”. Com a maturidade me tornei um leitor imprevisível, mas não menos visceral. Às vezes me sinto transportado para dentro da narrativa. É um pouco disso que vou tratar aqui.
Dia desse concluí a leitura de “Pequena coreografia do adeus”, da escritora paulista Aline Bei. Uma jovem escritora de grande talento que vem conquistando leitores, leitoras e prêmios importantes mundo afora. O livro me despertou alguns estranhamentos. Sobretudo, me surpreendeu desde a primeira página. Por isso lembrei imediatamente de Barthes e dessa frase que me acompanha através dos anos. Ao tempo em que a leitura ia me absorvendo, me seduzindo, também feria e me levava ao êxtase.
O livro é apresentado como um romance, mas confesso que não tenho certeza se acredito. Ah, esse baile dos gêneros literários! Mesmo convidado, nunca sei como dançar. Maria Valeria Rezende escreveu um romance que algumas pessoas leem como livro de contos. Sim, pode ser um romance, mas o que eu li em Aline Bei me fez lembrar a amiga, escritora e professora da UFS, Christina Ramalho que pesquisa a Poesia Épica contemporânea. Pois penso que foi o plano literário de uma epopeia conduziu minha leitura. Um romance em versos, assim como tanto poema épico foi escrito em prosa.
“Pequena coreografia do adeus” é uma epopeia da condição humana, com todas as suas travessias, tragédias e heroísmos. O espelho de uma vida sem maquiagens. Um baile sem máscaras das esquizofrenias que nos cercam diariamente. É a história de um espelho partido onde os cacos espalhados pelo chão refletem a força das coisas intransferíveis. O que respira ofegante em nossas memórias e transborda, está no livro. Também as trocas de pele que nos tornam mais sensíveis, perplexos e nem por isso mais fortes. É a experiência humana nua e crua que conduz o texto e impõe o ritmo da leitura.
Uma história que atravessa as relações familiares como elas são. Sem imagens idealizadoras. Sem sabores de margarina. Mostra o quanto é a partir da nossa realidade histórica e amorosa que nos identificamos enquanto espécie humana. O livro nos apresenta a rudeza do amor. Sim, pois o amor é uma verdade que não se veste apenas de afeto. Às vezes o amor é desespero. O que aparece na foto é quase sempre o que mentimos. Porque “mentir é um direito”, como diz a autora.
O livro vai nos absorvendo, nos engolindo aos poucos. Como uma serpente engole sua presa, sem pressa, preparando a digestão. O ritmo imposto pela escritora nos permite dançar com as palavras e conduzi-las para o encontro com os nossos infortúnios e com as nossas epopeias vividas noutros mundos – nossos mundos. Eis um texto vestido com elegância e beleza para narrar não o que é belo, mas o que na literatura e fora dela, é real. Ainda não li “O peso do pássaro morto, mas arrisco dizer que as escolhas de Aline Bei reinventam significados.
Num delírio bom de leitor pude despir a minha própria pele para ser Julia. Somente a boa literatura nos carrega para dentro da história e desvenda o sentido das nossas “paradas do orgulho lógico”. Em “Pequena coreografia do adeus” o lirismo assume a sua fúria, a sua função indomável que permite ao leitor reinventá-lo. “(…)será que um bailarino também dança/ o Silêncio?/ se os pés tocarem o chão/ ainda é Silêncio?/ e o que faz um bailarino/ senão devolver o Ar/ que faltava em nossos pulmões?” Em alguns momentos da leitura precisei fazer algumas pausas desmedidas para respirar.
Na escrita de Aline Bei predomina a pluralidade do olhar. Segundo Domicio Proença Filho, “a multissignificação é uma das marcas fundamentais do texto literário (…)”. Portanto, não estou inventando nada ao revelar não um espelho teórico do texto, mas a intuição enquanto ferramenta cognitiva para impulsionar a leitura. Disfarcei as temáticas para não perder a exatidão do que foi dito. Como podemos buscar coisas definitivas sendo tão inexatos? De fato, o que me conduziu até o final foi beleza da escrita e o ritmo alucinante. Nem a dedicatória escapou do encantamento.
Lau Siqueira
Gaúcho de Jaguarão, mora em João Pessoa desde os anos 1980. Escritor, poeta e cronista, tem diversos livros publicados, participou de antologias e coletâneas. Ex-secretário Estadual de Cultura da Paraíba.