A Amiga Andréia Nóbrega e sua aluna Thaís Clementino Gurgel

Com quantas letras se escreve e se inscreve uma Travesti no mundo? Com quantas lhe derem, com quantas quiserem, com quantas puderem, com quantas elas conquistarem, usurparem, se apossarem, ou inventarem. Travesti, Travesthi, Travesty, Travesthy, Travestir, Transvestir, Trans… Sem falar na quantidade imensa de alcunhas que ganhamos: trava, traveca, traveco, travecão… e por aí vai… Somos multiplamente nomináveis porque somos muitas e cada uma é uma. Não nos rotule!!! Estamos escritas e inscritas de muitas formas.

Escrevemos nossas histórias com mais letras que a maioria das pessoas cisheteronormativas, poisnossas histórias começam em lugares ainda não sabidos, não nominados; lugares de desafeto, de precarização, de desamor, de desumanização, de abandono, de expulsão, de violência, porém de desejo: desejo imenso de existir… Nascemos sem sermos nada nem ninguém, então, nos fazemos sujeitas escritas e inscritas com nossas próprias letras.

Há quem nos diga que não dominamos a língua!(HAHAHAHAHAHAHA!!! – leia-se gargalhando, por favor! E se você não leu assim, volte à “língua!” (pode por a língua pra fora em sinal de protesto!) e depois gargalhe(HAHAHAHAHAHAHA!!!), pois, se tem uma coisa que Travesti sabe usar, meu bem!!!, é a língua (e não estou falando somente desse órgão muscular, senhor das mais alucinantes peripécias em corpos alheios, falo do objeto tecnológico em questão: a língua portuguesa.)

Não sei se você pensa da mesma forma, porém acho que a palavra dominar é um tanto quanto abusiva quando se refere à língua, a outra, a que não tem músculo. Esta que nos permite ser e estar em um mundo imerso em linguagens e queconstantemente se utiliza desta tecnologia como instrumento de classificação, divisão e poder sobre o outro. Acredito, realmente, que não dominamos a língua portuguesa, nem nós, Travestis, nem a maioria de seus falantes nativos.

Na verdade, em boa parte dos casos, nós, Travestis, somos dominadas, não pela língua alheia (se a situação for prazerosa, até deixamos essas línguas alheias nos dominarem, se é que você me entende!), mas por um “CIStema” que nos expulsou das famílias, das escolas, dos empregos ordinários, da vida diurnamente cotidiana, dos afetos… “CIStema” esse que depois quer nos cobrar qualquer coisa, depois de tanto nos tirar. Até um R escrito em uma palavra.

Não sei se chamo isso de hipocrisia, desconhecimento histórico ou ruindade, mesmo. Afinal, com a língua construímos discursos, e esse “CIStema e seus representantes aprenderam a usá-los, a língua e seus discursos, para produzir ódio, tão somente ódio, gratuito e genuíno, vindo dessas almas que se autoproclamam “do bem”.

Não há bondade quando diante de uma Travesti empoderada e premiada, não se aclama a conquista, mas busca-se o erro, um erro, por menor que seja, para desqualificar, para diminuir, para desprestigiar… por puro ódio. “Que caíssem as línguas que propagam ódio” – isso deveria ser um castigo divino protocolado em cartório e sancionado em lei.

Voltando à língua enquanto tecnologia, ela é indomável, não se rende, cria brechas de fugas e muitas exceções, se metamorfoseia dependendo do tempo, do lugar, do gênero, da idade, dos contatos com outras “línguas”, se reinventa e se inventa. Nós, Travestis, não dominamos a língua portuguesa, mas fomos capazes de, a partir dela e seus hibridismos (pois somos um país híbrido), criar nossa própria língua, que por ser o que é, também é indomável: o pajubá ou bajubá, como queiram chamar. Língua de sobrevivência!Língua-protesto! Língua-Travesti! Língua de ofensa ou elogio! E aqui vai uma, em pajubá, pro dominador da língua se refestelar.

Um viva aos ocós que não fazem diague; nem xoxação com o edi da mona, tirando o guanto sem permissão pra rechear a trava; aos que tão sempre didê pras bonecas e pras mapôs do mesmo jeito (e olha que esse bofe didê sem azulzinho hoje em dia é luxo que aqué não paga); aos que se esbaldam em nossos picumãs, em nossos corpos chucados ou nenados; e não ficam de babado se a palavra Travesti se escreve com R no final.Quanto aos outros, nosso desprezo!

E sobre esta questão, vamos a ela: Travestir com R deixa de ser substantivo, passa a ser VERBO,mesmo que de terceira conjugação como diriam os gramáticos e vigilantes da língua de Camões (e o verbo se fez carne!). Passa a ser ação, a se movimentar no mundo, e é isso que estamos fazendo, nos movimentando, agindo, conquistando, ganhando prêmios, sendo aplaudidas, assumindo lugares que sempre foramnossos, porém retirados de nós pela força da língua e de seus discursos de ódio.

Que a língua nos salve de toda maldade e que TRAVESTIR seja ação mutante no mundo, que TRAVESTIR se metamorfoseie como toda língua viva faz (travestir eu, travestir tu, travestir nós, tra(ns)vestir-nos todas/es/os de toda potência que o nãodomínio da norma, mas o verdadeiro domínio da língua, é capaz.

Que a língua se manifeste em suas múltiplas facetas, porque, afinal, somos muitas e nos escrevemos e inscrevemos no mundo com a força de nossas letras, cada vez mais atrevidas, cada vez mais “anti-CIStema.”, com muito mais Rs, cada vez mais fortes, mais aspirados, mais potentes e menos suprimidos.

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Bia Crispim de Almeida é professora efetiva da rede pública do estado do RN e substituta do IFRN/ Caicó. Mãe de 13 gatos e dois cachorros) é defensora da causa animal.
Graduada em Letras/Português (UFRN); Especialista em Ensino de Espanhol como Língua Estrangeira (FELCS/UFRN); Mestra e doutoranda em Literatura Comparada na área das Poéticas da Modernidade e Pós-modernidade (PPGEL/UFRN); Escritora (autora do livro No Horizonte Tem Chuva Fiando – Editora CJA – 2022), participante de diversas coletâneas; e desde 2020 escreve semanalmente colunas para portais de notícias locais.
Travesti e militante pró-LGBTQIAPN+, principalmente quanto às demandas da comunidade Trans/Travesti, é Transfeminista e feminista vinculada aos grupos ATREVIDA/RN, Coletivo Chá das Marias – Parelhas/RN e Mulherio das Letras Zila Mamede/RN.
Coordena e participa de grupos de leitura como o PaRoLei – Parelhas; Mulheres Lendo Mulheres do Mulherio Zila Mamede – Natal; Clube TAG Currais Novos; e Clube de Leitura da FELCS/ Currais Novos. Como palestrante discursa sobre literatura, educação, discurso de ódio e questões de gênero dentro e fora do ambiente escolar.

[email protected] @bia_crispim