Vez em quando rola um papo sobre o que será da música popular brasileira quando neste mundo de meu deus não estiver pisando na terra a geração de 1968. E que geração, amigos, quantos gênios apareceram neste país, alguns com carreiras meteóricas, outros, pra nossa graça, vivos e produzindo como se ainda fosse o início de tudo. Não conheço a música do mundo, mas faço coro para quem diz que a mpb é a melhor que há, desde a Bossa Nova. Mas eu digo, desde muito antes, desde Pixinguinha, desde João de Barro, desde Luis Gonzaga, desde Chiquinha Gonzaga, desde sempre, melhor dizendo. Há alguns meses fui assistir a um show de Chico Buarque e saí transportado para outro plano, orgulhoso de mim mesmo, feliz de poder dizer aos que virão, crianças eu vi e vivi, sou contemporâneo dessa gente sem igual, desses compositores geniais, pude com eles cantar as canções que só eles podiam compor, me emocionei com cada verso que me atingiu, com cada melodia que me infringiu o sentimento de pertencimento ao tempo em que foram criadas, comunguei com as ideias políticas expressas em canções de tantos que eu não quero nominar para não ser injusto com outros tantos que amo com igual paixão, e amei com igual ardor as melodias de amor, as frases poéticas, os versos surpreendentes, a filosofia que brota entre acordes que valem por um tomo de Sócrates, se Sócrates houvesse escrito algum.

À medida que o tempo avança os gênios tombam e vão ficando pelo caminho, deixando em mim a sensação do fim. Elis Regina, Cazuza, Renato Russo, Cássia Eller morreram jovens. Rita Lee, Gal Costa, Aldir Blanc e tantos outros que partiram num rabo de foguete deixaram um vácuo que o tempo há de se encarregar de preencher, e creia, já está preenchendo, o tempo não para. E eu vejo alguns nomes surgindo, gente que vem do Nordeste que sempre alimentou de poesia e arte a alma deste país. Juliana Linhares, por exemplo, é uma dessas artistas. Vem do Rio Grande do Norte trazendo consigo personalidade marcante, condição sine qua non das grandes compositoras e cantoras, uma música forte, uma poética que une a ancestralidade sertaneja com a modernidade urbana. Natascha Falcão, pernambucana, parece refletir o legado de Chico Science com a mise en scene de Elke Maravilha para compor uma performance artística muito sua, muito própria, cativante e envolvente. Lucy Alves, paraibana, multi-instrumentista, ainda muito jovem liderando o grupo da família, o Clã Brasil, e depois dele construindo carreira solo, tem a chama das grandes artistas, carisma, brilha com luz própria, vibra energia.

Assisti a dois shows nesses dois últimos dias que me deixaram com uma sensação de que sim, há um fio sutil unindo o sul e o norte, a poesia, uma herança oculta de musicalidade e melodia, a esperança que renasce em nosso país depois da catástrofe. O primeiro, Luisa Arraes, carioca com forte herança pernambucana, trazendo composições próprias e arranjando com arrojo outras que não são suas, recriando de tal maneira a melodia que algum tempo levei para perceber o paralelismo estabelecido e mais do que isso, a originalidade que ela imprimiu e expressou, um show político com forte afirmação do seu ser, do seu soul.

Ontem foi a vez de Juzé. Esse tem a insolência como excelência. Nele não há soberba, mas há audácia nas composições. Nascido no embalo dos trios elétricos das Muriçocas do Miramar, Juzé fez um show que era uma espécie de oração, de agradecimento, de congraçamento com o tempo presente, porque agradecer é preciso, a humildade como marca pessoal de alguém que diz e tem muito a dizer. Não bastasse a sua performance que de algum modo lembra o genial Alceu Valença, trouxe para o palco, além do seu bando, que é como ele chama a sua banda, outro cara que é de tirar o chapéu, o amoroso Marco França, também multi-instrumentista, também ator, também compositor, que imprimiu um tom de blues e ajudou a transformar o show num espetáculo emocionante. E não podia ser diferente, porque além dele subiram ao palco Lucy Alves e Elba Ramalho, e todos cantando no improviso com maestria, com a propriedade de quem respira e transpira suor e melodia. Depois, no fim, a plateia ficou por ali, tocada pelo show e isso me fez lembrar que assim como no teatro acontece também com a música: uma vez atingida a terceira margem do rio, o território da beleza, o encontro entre a transcendência e a arte, voltar para a vida cotidiana é algo como despertar de um sonho, um show que teve Isadora Cruz recitando poesia, e por falar em beleza, em razão de ser, teve também Suzy Lopes envolta em véu, representando como só ela sabe fazer uma sua poesia, indicando desde o começo que aquele seria o tom, a magia.

Esses últimos tempos, ao assistir aos shows dessa gente que chega como uma nova onda criativa, fico pensando que sim, tudo tem continuidade, o legado construído pela geração que aos poucos abandona o palco não está perdido, aí estão vibrando os que agora chegam, os seus filhos artísticos. Se serão capazes de manter a chama da grande música popular brasileira, a resposta, meu amigo, está soprando ao vento.