Eugênia Correia é toda poesia. Sempre foi, mas somente agora vestiu a “Carapuça”. Compositora e artista visual. Professora aposentada da UFPB. Autora de livros que transitam entre a arte e a psicanálise. Finalmente publicou seus poemas. Só não creio que se possa chamar de estreia a colheita de uma vida inteira. Eugênia parece inventar recomeços o tempo todo. Conhece bem as palavras. Não apenas pelo significado. As conhece principalmente pelo que desvendam e escondem. Pelo que gritam aos silêncios.
“Carapuça” é um livro que chega inaugurando mais um projeto editorial na terra de Augusto dos Anjos. Pouco mais de sessenta páginas de puro encantamento. A Editora Dromedário abre alas com uma edição delicada e bonita. Traz para os fandangos da poesia contemporânea mais uma boa descoberta. O poeta e editor André Ricardo Aguiar começou com firmeza sua nova jornada. Eugênia escreve poemas que arrepiam nossas ossadas. Esticam os nervos, queimam a carne sangrada e se aninham na pele do desassossego.
O livro é precioso. Poemas precisos, guardados num projeto gráfico discreto e elegante. Um belo trabalho assinado por Emano Luna. Nessas primeiras décadas do terceiro milênio percorremos muitos caminhos em busca da boa poesia. O modernismo das tecelagens deslizantes neste mundo de abraços encarpados. Os poemas de Eugênia desafiam o tempo. Partem de uma realidade que se reinventa todos os dias cem anos após a Semana de Arte Moderna. Ela sabe que existir poeticamente é um longo percurso. Por isso, vai guardando rastros e sombras tatuadas pelo caminho.
PRESENÇA
Caramujo leva a casa
vai tudo junto
nem sente.
Já pessoa quando voa
é por achar a outra asa
numa pessoa presente.
Quando li o poema “Presença” lembrei imediatamente de “A metáfora crítica”, do saudoso e querido João Alexandre Barbosa: “o grau zero da leitura, se existisse, seria escrever o poema. Lê-lo é duplicar continuamente os espaços por ele construídos.” Então bate o martelo: “Toda leitura vem depois, mas o que ela, na verdade, persegue é o que está antes.” Daí ter publicado o poema em sua formatação original se tornou imprescindível. Um espelho quebrado no aço da plenitude. Esta é a poesia de Eugênia Correia sem retoques ou recortes.
“Carapuça” tem sua unidade calcada na linguagem poética e não nas temáticas, aliás caleidoscópicas. Enigmáticas e surpreendentes como a condição humana. Não sabemos em que momento o poema se distancia ou se aproxima da autora. Eugênia nos remete ao inexistente “grau zero da leitura”. O ponto de partida onde o poema se desnuda e, deliberadamente, confunde.
Difícil destacar um ou dois poemas neste livro. É um conjunto de alto calibre poético e ponto final. Algo que nos impede de experimentar uma única leitura. Posso até afirmar que alguns poemas desvendam não a poeta, mas o leitor ou leitora. O que se lê nos versos de Eugênia nos desafia. “O incompleto, o gesto em construção, o precário coração são temas vigentes e perpassam os muitos poemas do livro (…)”, escreve com muita propriedade o editor e poeta André Ricardo Aguiar na quarta capa.
O livro é inteiro e intenso. Destaco aqui apenas alguns poemas. Como “Lábil”, na página 31: “Tão ágil/ quanto frágil/ minha sombra/ sem mim.” É das vezes em que a busca pela metáfora é a razão do poema. O infinito e o abstrato habitando o indefinido. Tal como a vida se apresenta com seus anarco-íris e suas ausências de cores. Poemas que provocam na medida em que a leitura se transforma num mergulho imponderadamente feliz. “Como uma quilha cortando as ondas”, diria Maiakovski.
Questões sociais e até políticas, também vestem a Carapuça. Como no poema “T’eco”, nas páginas 28 e 29. Poema dedicado para um menino assassinado no Rio. Uma tristeza tão amplamente compartilhada pelo povo brasileiro. Tudo revestido de supressões. A falta do Estado. A falência do Amor. A ausência de perspectiva que tanto empalidece as cidades. “Som de asa quebrada/ cai outra asa/ cai o silêncio também”. Nesses três primeiros versos o estampido taciturno diante da naturalização midiática das tragédias.
Sergio Buarque de Holanda, no ensaio “Poesia e Crítica, diz que (…) “O subconsciente gera a poesia como o oceano gera as ondas, naturalmente e sem esforço.” Assim é a poesia de Eugênia Correia. Cujo lirismo reveste-se com a naturalidade de quem mergulha sem (ou com) medo nos próprios abismos. Desdobrando as ondas nas suas profundidades oceânicas. É exatamente nesta incerteza que mora a boa poesia. Ela nos escreve enquanto pensamos tê-la escrito.
Ao vestir a “Carapuça” Eugênia nos diz que não há certeza alguma. Nada é estático. Nem na rocha vulcânica que reduz o tempo aos fragmentos de um calendário. Na aparência quietude-pedra, milhões de átomos em velocidade. Eis um livro que traz para a poesia contemporânea brasileira o rugir dos nossos estranhamentos. Nada é assim tão novo. As imagens que Eugênia trabalhou nas artes plásticas já eram poemas. As amplitudes turbulentas de uma vida mergulhada nas argúcias e fissuras da condição humana. Assim, ela estreia na poesia com a maturidade de uma juventude planejada para resistir.
Lau Siqueira
Gaúcho de Jaguarão, mora em João Pessoa desde os anos 1980. Escritor, poeta e cronista, tem diversos livros publicados, participou de antologias e coletâneas. Ex-secretário Estadual de Cultura da Paraíba.