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O debate sobre o uso da tornozeleira eletrônica volta e meia retorna ao centro das discussões jurídicas e sociais, especialmente quando casos de grande repercussão envolvem o monitoramento eletrônico. No exercício da advocacia criminal, surge de maneira recorrente a pergunta o que é melhor para um acusado a prisão preventiva ou a adoção de medidas cautelares diversas, como a própria tornozeleira? A resposta não é simples, mas parte de um princípio fundamental, prender preventivamente é medida grave, de caráter excepcional, que só se justifica quando presentes riscos reais e concretos à investigação, à ordem pública, à ordem econômica ou à aplicação da lei penal, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal.
A prisão antes do trânsito em julgado não pode ser utilizada como punição antecipada, vingança social ou resposta automática à gravidade do fato. Seu uso exige fundamentação robusta, demonstrada a partir de elementos concretos que indiquem ameaça ao processo ou à coletividade. Por essa razão, o sistema jurídico brasileiro prevê um conjunto de medidas alternativas, de advertências, recolhimento domiciliar, proibição de contato, suspensão de atividades e, claro, o monitoramento eletrônico como instrumentos que permitem compatibilizar a proteção social e o respeito às garantias fundamentais.
É nesse contexto que a tornozeleira eletrônica ganha força. Ela não é sinônimo de impunidade, muito menos um privilégio, trata-se de ferramenta de controle estatal que impõe limites e fiscaliza o cumprimento das condições impostas pelo juiz. Na prática, funciona como meio-termo,protege o andamento da investigação e resguarda a segurança pública, mas evita o encarceramento desnecessário, especialmente em um país que apresenta uma das maiores populações prisionais do mundo. Segundo dados oficiais da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN/DEPEN), o Brasil registrou 941.752 pessoas em cumprimento de pena no primeiro semestre de 2025, número que evidencia a magnitude e a complexidade do sistema penitenciário nacional, marcado historicamente por superlotação, violações de direitos e reduzida eficácia ressocializadora.
Do ponto de vista da advocacia criminal, é fundamental reconhecer que a tornozeleira eletrônica não deve ser tratada como solução automática ou como a alternativa mais benéfica para todos os investigados. Na prática, muitos clientes enfrentam impactos significativos na vida profissional, social, familiar e emocional, de modo que, em diversas situações, medidas cautelares menos invasivas como o comparecimento periódico, a proibição de contato com determinadas pessoas ou a suspensão do exercício de função específica mostram-se mais proporcionais, eficazes e menos estigmatizantes. As conclusões científicas produzidas por Raquel Alves de Oliveira Bandeira, em pesquisa realizada no âmbito do Mestrado em Ciências Jurídicas da UFPB (A (IN)EFETIVIDADE DO MONITORAMENTO ELETRÔNICO NAS APENADAS DO REGIME ABERTO DA PENITENCIÁRIA DE REEDUCAÇÃO FEMININA MARIA JÚLIA MARANHÃO) reforçam essa percepção ao demonstrarem, a partir de entrevistas com mulheres submetidas à monitoração eletrônica, que o uso da tornozeleira frequentemente gera constrangimentos, limita oportunidades profissionais e intensifica o estigma social, acarretando efeitos contrários à prometida reinserção social
Como advogados, portanto, não se trata apenas de “trocar” a prisão por uma tornozeleira, mas de avaliar cuidadosamente caso a caso, se a medida é realmente necessária, proporcional e digna, ou se acaba apenas reproduzindo novas formas de vigilância e sofrimento sem ganhos concretos para o processo ou para a sociedade. É claro que há desafios. A falta de estrutura em alguns estados, a falha na fiscalização e o preconceito ainda existente em parte da sociedade criam obstáculos. Mas isso não retira a legitimidade das medidas cautelares, que devem ser vistas como instrumentos de racionalização do sistema penal, e não como sinais de fragilidade institucional.
No fim das contas, a pergunta “é melhor para o cliente a prisão ou a tornozeleira?” só pode ser respondida com a serenidade que o processo penal exige, caso a caso, pessoa a pessoa, realidade a realidade. O advogado criminalista sabe, melhor do que ninguém, que nenhuma medida é neutra, cada decisão judicial altera destinos, famílias, histórias. Por isso, quando não há risco real à investigação, às vítimas, às testemunhas ou à ordem pública, a prisão preventiva deixa de ter razão legítima de existir e transforma-se em excesso, as vezes estardalhaço. É justamente nesse espaço, onde a cautela ainda é necessária, mas o cárcere já não é justificável, que a tornozeleira eletrônica pode assumir papel de instrumento jurídico útil, não como panaceia, não como castigo antecipado, mas como solução intermediária, proporcional, racional e minimamente humanizada.
Assim, a discussão não é e nunca deveria ser entre punir ou afrouxar, mas entre proteger o processo sem destruir vidas antes da hora. Se for inevitável impor algum grau de vigilância, que seja o menor suficiente, o menos invasivo, o que reduza danos e preserve o que ainda pode ser preservado. E, em muitos casos, essa resposta não está atrás das grades, mas na aplicação responsável das medidas cautelares previstas em lei, entre elas o monitoramento eletrônico, sempre fiscalizado, sempre excepcional e sempre subordinado ao princípio maior que orienta qualquer intervenção estatal: a dignidade da pessoa humana.
Em tempos em que o debate público ferve, especialmente após episódios amplamente noticiados envolvendo o rompimento de tornozeleiras eletrônicas como no caso recente do ex-presidente Jair Bolsonaro, surge uma pergunta inevitável o que acontece quando uma medida cautelar dessa natureza é violada? As consequências jurídicas podem ser sérias, desde a revogação do benefício até a decretação de prisão preventiva, passando ainda por responsabilização penal específica quando houver intenção de fraudar a fiscalização. Mas esse é um tema que merece análise própria, cuidadosa e aprofundada. Por isso, no próximo artigo, explorarei exatamente quais são as repercussões legais de romper, burlar ou interferir no monitoramento eletrônico e por que, no processo penal contemporâneo, cada gesto importa.
Romulo Palitot
Criminalista. Doutor em Direito Penal. Professor de Direito Penal (UFPB / UNIPÊ). Presidente da Associação Nacional da Advocacia Criminal- ANACRIM-PB. Auditor do Superior Tribunal de Justiça Desportiva(STJD), do Automobilismo.