Num dia de churrascos no quintal da nossa casa, minha filha caçula, do alto dos seus três anos de idade, viu o pai derramar um pouco de cerveja. Imediatamente ela correu, ergueu seu pezinho e passou a tentar secar o molhado dizendo: “Pai, você sujou a terra”.
Aquele gesto infantil me emocionou profundamente. Havia ali, a vivência natural da criança, sem qualquer filtro, da conexão profunda entre tudo no planeta.
Essa lembrança me veio essa semana, quando li uma notícia sobre o chamado “efeito geral”. Em suas missões na estação espacial, astronautas revelam que ao contemplarem a terra do alto, experimentam uma alteração radical de suas crenças, para viverem uma experiência reveladora de que tudo no planeta está conectado. Seres vivos, oceanos, rios, montanhas, tudo enfim acha-se interligado.
E vejam que coincidência. Ontem, da minha fila de leituras, abri o livro de Gregory Bateson, “Rumo à uma Ecologia da Mente”, numa nova edição da Ubu Editora, 2025,
O livro fora publicado originalmente em 1972, e, Bateson nos deixaria em 4 de julho de 1980. Viveu seus últimos anos angustiado com o destino do planeta, convicto de que o nosso modelo civilizatório estava destruindo a conexão profunda de que falam hoje os astronautas, os cientistas, as chamadas correntes alternativas de pensamento, os ecologistas e todos aqueles que se preocupam com o meio ambiente de um modo geral.
O pensamento de Bateson é surpreendente. Psiquiatra, biólogo, antropólogo, cientista social, estudioso da cibernética, crítico das metodologias clássicas,
Buscou com afinco aprofundar a compreensão sobre a mente, a comunicação dos animais e essa conexão profunda entre tudo no planeta terra, que hoje os cientistas chamam de efeito geral.
Mais que isso, o pensamento de Bateson exercitava uma espécie de liberdade expandida, onde os diversos campos de conhecimento por ele explorados participavam desse exercício de descobertas. Com sua antropologia, estudando os mitos e lendas dos povos primitivos, recuperando o texto bíblico do livro do Gênesis, buscou entender as origens dos fundamentos científicos e culturais que separam matéria e energia, conhecimento científico e senso comum, mente e natureza, entre tantas outras separações que ainda fazem parte da investigação científica, das especializações, das relações humanas, sobretudo.
Quando estudava na UFPB, lia, nos longos textos de comunicação, breves passagens sobre os estudos de Bateson e Margareth Mead. Recordo-me da empatia que experimentava pelos autores, mas pela primeira vez, com dezenas de anos de atraso, tenho um livro inteiro dele na palma das mãos. A sua leitura me causa um prazer indescritível. Vejo-o como um explorador, palmilhando os mais de dois mil anos do conhecimento clássico em filosofia, em estudos da sociedade, do planeta e da mente, espargindo nessa longa trajetória, seu próprio hálito de curiosidade, espanto, incerteza, crítica, tudo feito com algo que eu chamaria de respeito e leveza.
Os temas explorados por bateson sobre natureza, ecologia e a ação do homem no planeta, considerados à época como radicais por seus pares, aparecem hoje com veemência em conceituadas revistas, reportagens de tv, debates científicos e nas mais variadas vozes de autoridades de renome, a exemplo de Bruno Latour, David Harvey, David Lazlo, Copenawa e tantos outros.
Persiste, incrustada na cultura, como um vírus danoso, a ideia de separação entre natureza e cultura. Habitamos o planeta, mas agimos como expectadores, olhando de fora, o que faz nosso modelo civilizatório com a vida na terra.Os alertas e ameaças reais são fruídos como uma espécie de espetáculo ficcional, enquanto comemos pipoca e persistimos de cabeças baixas, fitando nas nossas telas, o desenrolar da vida virtual.
Sim, a obra de Bateson é um diálogo vivo com os cientistas de hoje. Os fundamentos estão lá, nos mitos, nas lendas, e, com a materialidade dos conceitos objetivos da ciência clássica, que estendeu os trilhos do progresso sobre a terra, sem dó nem piedade; sem receios ou dúvidas, tudo em favor do capital e da sociedade de consumo.
E o que diria Gregory Bateson sobre os últimos desenvolvimentos em inteligência artificial? Calcula-se para 2030, o exponencial trabalho de vincular o neo-córtex humano ao neo-córtex digital, conectando o cérebro às redes neurais, na nuvem. Promete-se com isso, uma verdadeira revolução em arte, estética, e, o suprassumo dos suprassumos: A revelação do pensamento humano em bruto, com seu código fonte original.
Sim, minha pequena menina, hoje bióloga e professora de ioga. A terra está suja. Dos agrotóxicos, das perfurações, ferida pelos desmatamentos, violentada pelas armas de guerra, erodida e febril. A separação entre humanidade,natureza e cultura nunca esteve tão alargada. O neo-córtex que nos humanizou, e que a natureza levou bilhões de anos para engendrar, agora corre em alta velocidade para o trans humano, ali onde já não seremos nós mesmos. Ali onde uma criança pequena não mais erguerá seu pé para limpar a terra do seu quintal.
Joana Belarmino
Jornalista, mestra em Ciências Sociais, Doutora em Comunicação e Semiótica. professora titular colaboradora do Programa de Pós-graduação em jornalismo da UFPB,contista e membro do Clube do Conto da Paraíba.