Desde que nos mudamos, há quase um ano, eu não tiro os olhos das janelas. Meu prédio é de esquina. Cada quarto me apresenta um ângulo das ruas que o cercam. A varanda também conta, claro.

Era assim o começo da primeira tentativa de texto para esta coluna. Deixei descansar pois tinha tempo. A ideia:falar sobre o livro aberto que folheio desde o canto dos passarinhos até o pôr do sol entre o esqueleto de uma obra abandonada. Aí, na sexta, passo por um susto grande. Amelinha e Lili são respectivamente meu pitoco e meu pingo de alegria. A primeira, um resgate direto das ruas do Terceirão. A segunda, o resgate do resgate um tempinho depois.

Criamos um passeio pelo mezanino do prédio. Um espaço amplo e aberto para que possam correr além dos limites do apartamento. No começo, a meu pedido, com guia e coleira. Aos poucos, só com a coleira para fins psicológicos. Meu, não delas. O risco? Subir no parapeito por curiosidade nata aos felinos ou para alcançar alguma presa voadora.

Pois bem. Cadê Lili? Procuramos pelas plantas, pelos buracos no gesso (estamos em reforma), nas salas que elas entram pela janela, pelas escadas (mesmo com a porta fechada) pelas plantas, pelos buracos no gesso, nas salas. Pelas escadas eu só fui uma vez. O coração vai se espremendo. Descemos para a garagem.

Lá estava ela, embaixo de um carro. Se esfregando para tomar posse de um novo território. Avisto um machucadinho na boca. Raspou durante a queda, presumo. Não contenho as lágrimas enquanto ela come como quem passou três dias vagando pela caatinga. Esqueço o primeiro parágrafo e começo outro para falar de amor, liberdade, descuido e culpa. Vamos testar. Ainda tenho tempo. Eis que meu lugar na lista de espera pula para frente.

Meu coração dispara. Não sou ansiosa nem nada. Quero só fazer bonito na estreia. Antes que alguém diga que usei a fama que eu não tenho ou o dinheiro que também não tenho para ter privilégios neste órgão de comunicação, me defendo: a pessoa antes de mim não estava totalmente compatível com a data prevista para ela. Por via das dúvidas, esse trecho contém ironia, ?

Por conta dessa ironia lembro quando meu tio chegou na ponta do precipício: agora, só um transplante. A vida de alguém tão amado dependia da não-vida do amado de outras pessoas. Chorei. Eu pedia para alguém morrer. Alguém bom o suficiente para doar o que já não lhe servia. Alguém, cuja família fosse capaz do maior gesto em meio a maior dor.

21 anos na época. Hoje já vai para mais de 31 anos a idade dos pulmões que permitiram a meu tio chegar na meta: ver a filha se formar. Dobrar a meta a levando para o altar e dobrar de novo sendo avô. Esse menino e sua família que eu desconheço, eu nunca esqueço.


Da minha janela vejo pessoas botando comida para gato, fazendo carinho em cachorro, alimentando gente abandonada pela sorte. Moças e rapazes saindo felizes do trabalho. Chegando também. Jovens vomitando o exagero da festa, senhoras de tênis prolongando a vida. Vejo carro apressado, moto agoniada e bicicletas numa boa. Passarinhos namorando e na sequência construindo ninho.

Domingo passeamos novamente com Lili (e Amelinha) para que nem ela, nem eu, fiquemos traumatizadas. Somente mais atentas. Eu ainda mais. Dormi desejando que nenhuma perda seja em vão e nenhuma espera seja vã. Que doemos tudo aquilo que não nos cabe mais e que se encaixa perfeitamente em alguém por aí.

Pronto, estreei.