(Gilka Machado, Hilda Hilst, Ana C, Angélica Freitas e Anna Apolinário – imagens do google)

No que se refere às pesquisas sobre a autoria feminina no Brasil, identificamos que o corpo feminino é uma das principais categorias de análise, como, por exemplo, o corpo erótico. Se é certo que este já aparecia em poetas representativas da tradição lírica de autoria feminina, também é correto afirmar que, na produção contemporânea, ele está cada vez mais explícito e ganha novos contornos, especialmente o político. Pensando nisso, observaremos brevemente um percurso do corpo a partir da tradição do século XX com Gilka Machado, Hilda Hilst e Ana C., até as contemporâneas Angélica Freitas e Anna Apolinário.

Para ilustrar a presença da tradição lírica, leiamos uma passagem do poema “Cio” (1978), da carioca Gilka Machado: “É noite. Paira no ar uma etérea magia; / Nem uma asa transpõe o espaço ermo e calado; / E, no teor da amplidão, a Lua, do alto, fia véus luminosos / Para o universal noivado. / […] / Noite… Há por tudo um sensual arrepio / Sinto pelos no vento… É a volúpia que passa, flexuosa, a se / Roçar por sobre as cousas todas, como uma gata errando em / Seu eterno cio”.

Nos versos, a voz poética registra elementos eróticos que vão se intensificando; o corpo se inicia nesse lugar “ermo e calado” e se transporta para a “noite de bodas”, o “roçar” e o “cio”. Identificamos, então, um jogo de palavras em que a voz lírica tece imagens que a levam para o noivado. Ademais, há uma atmosfera lunar que traz uma sensação de mistério e sensualidade, além da sensação de liberdade quando se refere ao corpo sentindo o vento. Assim, vemos uma sujeita lírica ousada, que se apresenta através do corpo de uma gata no cio, animal que gosta de se roçar em outros corpos, o que torna notório os desejos da voz poética.

Outra grande referência dessa linhagem poética de mulheres é Hilda Hilst, em sua obra encontramos uma poética do corpo erótico que é também sagrado. Um exemplo forte é o poema “Dez chamamentos ao amigo” (2018). Vejamos os versos: “Se te pareço noturna e imperfeita / Olha-me de novo. Porque esta noite / Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. / E era como se a água / Desejasse […] / Que o teu corpo de água mais fraterno / Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta / Olha-me de novo. Com menos altivez. / E mais atento”.

Aqui, notamos que a voz lírica expõe seus desejos mais íntimos e sagrados, além de destacar a importância da presença física do amante para alcançar o prazer. Assim, para a sujeita poética, o corpo não é apenas erótico, mas também sagrado.

Já em Ana C., o corpo feminino expõe reflexões e questionamentos sobre sua condição na sociedade e seu papel social. Leiamos, por exemplo, versos do poema “Noite de Natal” (2017): “Noite de Natal. / Estou bonita que é um desperdício. / Não sinto nada. / […] Entretanto sou moça / estreando um bico fino que anda feio / pisa mais que deve / me leva indesejável pra perto das / botas pretas […]”.

A voz poética expressa condições sociais do feminino retratadas com certo desânimo ao ter que lidar com práticas heteronormativas, registrando seu desinteresse, ainda que se sinta bonita e atraente ao estrear o bico fino. Portanto, aqui, o corpo feminino questiona e reflete sobre as práticas discursivas naturalizadas a respeito do corpo da mulher.

As herdeiras líricas das poetas citadas registram ainda mais o corpo feminino, tanto na categoria erótica quanto, especialmente, na política. Isso pode ser observado a partir de 2010, visto que, conforme Klien (2018), há uma nova poesia feita por mulheres que fala o que sente e se faz ouvir.

Uma referência emblemática disso é a publicação do livro O útero é do tamanho de um punho (2012), de Angélica Freitas, que registra de forma potente o corpo da mulher como centralidade. Desde o título, há o destaque da potência desse corpo como elemento de resistência. Nos versos, encontramos denúncias sobre o olhar machista que a sociedade lança sobre o corpo feminino. Um exemplo é o poema “A mulher quer” (2012), que expõe hipóteses sobre o que querem as mulheres a partir de uma visão masculina que acredita que elas vivem em função do homem e de seu dinheiro.

Pensando nessa categoria na poesia de autoria feminina paraibana contemporânea, temos a poetapessoense Anna Apolinário, que explora o corpo erótico no poema “Febre das musas” (2014): “Devoro os delírios de Sylvia / 40 graus de verve gritando em mim / Estrelas furiosas / Sangram as sombras de Sexton / Orgias de ópio […] / Minha boca cintila / Sonhos de Cecília / […] E Safo decifra / O mito escarlate em meu ventre / Eu sou o pássaro amarelo raptado / Que canta no sexo de Joyce Mansour / Desabotoa minha gola, Pagú!”.

O poema apresenta a reação do sujeito lírico feminino em contato com suas “musas”, que são escritoras aclamadas, tratadas com estreita intimidade, denotada tanto pelo conhecimento de sua literatura quanto de dados biográficos delas. Aqui, o corpo erótico é delineado com imagens luminosas (“estrelas”, “cintila”) que constroem a atmosfera de sensualidade e desejo.

No poema “Mulher” (2018), de Apolinário, observamos a inscrição de um corpo feminino político. Leiamos um trecho: “Mulher, / Aniquilaram-te o corpo / Derramaram teu sangue / Covardemente / Mas em teu nome / Nenhum talho / Tua luta, tua ideia, tua voz / Pulsam / […]/ Marielle, presente! / Agora, sempre”.

Ao longo dos versos, é notório que a voz lírica tece um discurso em memória ao legado da vereadora carioca Marielle Franco. A sujeita lírica inscreve esse corpo feminino no poema, expondo a violência à qual foi submetido e enfatizando que seu legado vive, ressignificando a morte física da vereadora e transformando-a em um estado perpétuo de luta política.

Portanto, por meio da análise empreendida, é evidente que a produção de autoria feminina, tanto da tradição quanto das contemporâneas, inscreve em seus versos imagens de corpos femininos de modo rico e atento. Na erótica temos imagens sensuais e uma riqueza na atmosfera que intensifica os desejos da voz lírica. Além disso, há, cada vez mais, a inscrição de corpos políticos ecoando nos versos das poetas contemporâneas, expondo não só um corpo, mas uma comunidade de corpos, uma lírica de resistência que registra e denuncia a dor que por tanto tempo foi ignorada.

Isabela Cristina Gomes Ribeiro da Silva é Licenciada em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal da Paraíba (2023) e mestranda em Letras pela mesma instituição. Em 2018, participou do grupo de estudos “Análise Crítica do Discurso – Formações ideológicas e de gênero”, tendo atuado, também, nos projetos de extensão “A filologia em sala de aula: o conhecimento pelos manuscritos” e “Literatura(s) em debate”. Entre 2019 e 2021, foi bolsista CNPQ no Programa de Iniciação Científica (IC). Atualmente, participa do grupo de pesquisa Laboratório de Estudos de Poesia (LEP) com estudos direcionados à poesia contemporânea de autoria feminina na Paraíba