Desde as primeiras décadas do século XX, há registros de mulheres paraibanas publicando em jornais, livros e antologias, tanto na capital quanto em cidades interioranas. Esse fato confirma um dado incontornável: as mulheres sempre escreveram e buscaram meios de inscrever sua voz no espaço público da literatura. Com o tempo, esse número cresceu, revelando uma persistência que, no entanto, não encontrou muita correspondência na crítica nem na historiografia literária.

A história oficial da literatura paraibana, ao longo do tempo, tem empurrado essas autoras para o esquecimento. Nos espaços de consagração, seja nas instituições ou na crítica acadêmica, quase nunca lhes foi concedido o lugar de protagonistas. Nesse sentido, a escrita das mulheres é mais do que um gesto artístico, é um ato de insubordinação. Isso pois, quando uma mulher escreve, desmonta o mito da docilidade, rompe o silêncio imposto e expõe as fissuras da história.

O incômodo não reside apenas no conteúdo da obra, mas no próprio gesto de se atrever a narrar, denunciar e existir pela palavra. A literatura, nesse contexto, é umespaço de resistência, onde escrever é afirmar a liberdade de ser e, ao mesmo tempo, desafiar estruturas que, há séculos, insistem em negar o espaço da mulher na literatura.

Reconhecendo isso, penso em um nome emblemático da autoria feminina na Paraíba: Irene Dias Cavalcanti, cuja produção marcou a nossa literatura nos anos 1970 por sua ousadia. Nascida em 1927, no Rio Grande do Norte, e radicada na Paraíba desde a infância, Irene atuou como advogada, jornalista, poeta e romancista. Estreou na poesia nos anos 1960, conquistando notoriedade com obras como Eu, Mulher Mulher (1971) e Lirerótica(1974), nas quais abordou sem pudor o erotismo e o desejo feminino, temas considerados imorais em uma época em que se esperava das mulheres o silêncio.

(Irene Dias Cavalcanti – imagem do google)

Sua escrita, constantemente julgada como “indecente”, é hoje reconhecida como pioneira e fundamental para a literatura paraibana, não apenas pela originalidade, mas por afirmar a liberdade da escrita feminina em meio a um contexto de apagamento. Além disso, é necessário informar que, no início de setembro de 2025, aos 98 anos, Irene Dias Cavalcanti lançou o livro de memórias Irene Dias e Noites, no qual revisita sua trajetória e mostra como a poesia erótica que produziu constituiu um enfrentamento direto à moralidade conservadora de seu tempo.

Esse enfrentamento e ousadia de Cavalcanti se manifesta notoriamente em um dos poemas da obra Eu, Mulher (1971), em que a voz lírica afirma o corpo e a emoção da mulher sem pedir:

Há um clamor

intenso,

um grito louco

dizendo cantos

sensuais eróticos…

na solidão de

um leito, existe

EU MULHER

Em ânsias de

carinho…

há, um sussurro

atroz, um vendaval

em um corpo

que fala intensamente

dizendo em lágrimas

quentes e sentidas,

que possui lábios,

seios e ovários

possui um útero

que pede sem

cessar, o hormônio,

alimento necessário…

há uma alma

que sente e sente

tanto, carência

imensa de afeto,

de ternura…

(Cavalcanti, 2013, p.21)

Os versos revelam um duplo lamento: o desejo e a solidão por se atrever a desejar. O corpo é retratado em sua biologia, a partir do contorno do próprio corpo a exemplo da imagem dos lábios; e a alma denuncia a necessidade de afeto e ternura. Não se trata de um desejo direcionado a outro específico, mas de uma força interior que emerge da própria mulher, como uma afirmação de autonomia.

A poesia de Cavalcanti transforma o escrever em afirmação. Ao colocar o corpo feminino no poema, ela reivindica espaço, desejo e liberdade, mostrando que a voz da mulher na literatura é, sempre, também um ato de (r)existência. A liberdade na escrita da mulher afirma sua identidade e torna visível sua experiência.

 

 


Autoria
: Isabela Cristina Gomes Ribeiro Da Silva é Licenciada, mestra e doutoranda em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (PPGL/UFPB). Desde 2019, participa do grupo de pesquisa Laboratório de Estudos de Poesia (LEP), e seus estudos são direcionados à poesia contemporânea de autoria feminina na Paraíba.