Desde as primeiras décadas do século XX, há registros de mulheres paraibanas publicando em jornais, livros e antologias, tanto na capital quanto em cidades interioranas. Esse fato confirma um dado incontornável: as mulheres sempre escreveram e buscaram meios de inscrever sua voz no espaço público da literatura. Com o tempo, esse número cresceu, revelando uma persistência que, no entanto, não encontrou muita correspondência na crítica nem na historiografia literária.
A história oficial da literatura paraibana, ao longo do tempo, tem empurrado essas autoras para o esquecimento. Nos espaços de consagração, seja nas instituições ou na crítica acadêmica, quase nunca lhes foi concedido o lugar de protagonistas. Nesse sentido, a escrita das mulheres é mais do que um gesto artístico, é um ato de insubordinação. Isso pois, quando uma mulher escreve, desmonta o mito da docilidade, rompe o silêncio imposto e expõe as fissuras da história.
O incômodo não reside apenas no conteúdo da obra, mas no próprio gesto de se atrever a narrar, denunciar e existir pela palavra. A literatura, nesse contexto, é umespaço de resistência, onde escrever é afirmar a liberdade de ser e, ao mesmo tempo, desafiar estruturas que, há séculos, insistem em negar o espaço da mulher na literatura.
(Irene Dias Cavalcanti – imagem do google)
Sua escrita, constantemente julgada como “indecente”, é hoje reconhecida como pioneira e fundamental para a literatura paraibana, não apenas pela originalidade, mas por afirmar a liberdade da escrita feminina em meio a um contexto de apagamento. Além disso, é necessário informar que, no início de setembro de 2025, aos 98 anos, Irene Dias Cavalcanti lançou o livro de memórias Irene Dias e Noites, no qual revisita sua trajetória e mostra como a poesia erótica que produziu constituiu um enfrentamento direto à moralidade conservadora de seu tempo.
Esse enfrentamento e ousadia de Cavalcanti se manifesta notoriamente em um dos poemas da obra Eu, Mulher (1971), em que a voz lírica afirma o corpo e a emoção da mulher sem pedir:
Há um clamor
intenso,
um grito louco
dizendo cantos
sensuais eróticos…
na solidão de
um leito, existe
EU MULHER
Em ânsias de
carinho…
há, um sussurro
atroz, um vendaval
em um corpo
que fala intensamente
dizendo em lágrimas
quentes e sentidas,
que possui lábios,
seios e ovários
possui um útero
que pede sem
cessar, o hormônio,
alimento necessário…
há uma alma
que sente e sente
tanto, carência
imensa de afeto,
de ternura…
(Cavalcanti, 2013, p.21)
Os versos revelam um duplo lamento: o desejo e a solidão por se atrever a desejar. O corpo é retratado em sua biologia, a partir do contorno do próprio corpo a exemplo da imagem dos lábios; e a alma denuncia a necessidade de afeto e ternura. Não se trata de um desejo direcionado a outro específico, mas de uma força interior que emerge da própria mulher, como uma afirmação de autonomia.
A poesia de Cavalcanti transforma o escrever em afirmação. Ao colocar o corpo feminino no poema, ela reivindica espaço, desejo e liberdade, mostrando que a voz da mulher na literatura é, sempre, também um ato de (r)existência. A liberdade na escrita da mulher afirma sua identidade e torna visível sua experiência.
Autoria: Isabela Cristina Gomes Ribeiro Da Silva é Licenciada, mestra e doutoranda em Letras pela Universidade Federal da Paraíba (PPGL/UFPB). Desde 2019, participa do grupo de pesquisa Laboratório de Estudos de Poesia (LEP), e seus estudos são direcionados à poesia contemporânea de autoria feminina na Paraíba.
MULHERIO DAS LETRAS
Coletivo literário feminista que reúne escritoras, editoras, ilustradoras, pesquisadoras e livreiras, entre outras mulheres ligadas à cadeia criativa e produtiva do livro, no Brasil e no exterior, a fim de dar visibilidade, questionar e ampliar a participação de mulheres no cenário literário.