A mulher escolheu o ponto mais oriental das Américas para morar e banhar seu corpo carente de estrogênio e progesterona. A manhã acorda os raios impetuosos da aurora sacodindo redes e lençóis. Após os mergulhos matinais, Ludmila se recolhia ali mesmo debaixo da sombra da amendoeira.

Acomodava-se estendida numa esteira de vime recoberta por uma canga azul estampada com olhos gregos enormes! Ajeitava a mochila como almofada para cabeça e reiniciava, com seus óculos escuros, a leitura de mais uma autora do Mulherio das Letras. O romance era uma premiada obra metaficcional em irônica dialogia com o clássico de Lewis Carroll. Estava na página em que a personagem, exausta das desafiantes travessias, adormecera no gramado de um parque:

[…] e eu largada, vendo o mundo de baixo para cima, eu ali, ao rés do chão, observando apenas os pés, os calçados, passos, ritmos, tratando de identificar por eles as identidades,  os sentimentos, a vida… Pelos pés… Não me mexi por um bom tempo,  não queria mostrar a cara naquela situação, um sentimento de humilhação ainda persistia sob a surpresa de ver o mundo por um novo ângulo.”

Ali estendida na areia, na mesma posição da personagem, experimentava o movimento catártico da leitura. Havia algum tempo que Ludmila procurava reduzir ao mínimo sua participação na vida ativa. Não que desgostasse da ação, mas com os hormônios em queda, o amor pela ação que sempre nutriu seu caráter, seus gostos, ia minguando, minguando. O interesse pela ação sobrevivia, porém, no prazer de ler.

Gostava de ler mais de um livro ao mesmo tempo. Sua paixão estendia-se pelo coração selvagem que atravessava a prosa da literatura feminina contemporânea, desde  Lispector, mas também pelos livros de poesia, que lera recentemente. Nos Quintais, colhia os melhores frutos do Cacau, enraizados na escrevivência do feminino. É tudo ficção quando meu silêncio lambe tua orelha e alcança, sorrateiro, os fios de prata, enfatizavam os versos e a prosa das filhas Enluaradas de Lilith.

Ludmila nutria pelos livros um amor tátil:  infiltravam na memória de sua pele como as ondas no corpo poroso da areia. Enfrentá-los na carnadura do papel lhe proporcionava extremo prazer físico: sopesá-los na mão, densos, espessos, volumosos.

Considerava com um pouco de apreensão o tempo de espera para, enfim, se entregar à leitura, em busca do intenso prazer do texto.

Do outro lado da superfície da página, era possível entrar num mundo no qual a vida era mais vida do que aqui, deste lado, refletia a leitora. Agora a superfície do mar já não a separava daquele mundo azul e verde.   Extensões de fina areia ondulante desenhavam seres pintados com as cores da escrita do Almodóvar paulistano. Era o romance punk disparando artilharia poética no conservadorismo!  A casa das encantadas desvelava um mundo paradoxalmente animal, mineral e beligerante sob o sol escaldante de Manaíra.

 

O conto faz referência aos livros de:

Maria Valéria Rezende. Quarenta dias (Objetiva, 2014)

Clarice Lispector. Perto do coração selvagem (Francisco Alves, 1990)

Patrícia Cacau. Quintais (In-finita, 2020)

Flávia Ferrari. É tudo ficção. (Eu-i, 2023)

Marta Cortezão. Meu silêncio lambe tua orelha (Eu-i, 2023)

Fio de prata, Margarida Montejano. Fio de prata (Scenarium, 2022)

Isa Corgosinho. Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021)

Cláudio Daniel. Casa das Encantadas (Kotter, 2023)

 

 

 

ISA CORGOSINHO  é natural de Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa.  Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e  Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, poeta, cronista, autora de artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021). Coletânea NÓS Autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023). Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Livro Memórias da pele (Venas Abiertas – III – Mulherio das Letras, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022), entre outras.