Meu esposo se foi e qualquer coisa me fazia lembrar dele. Era as roupas cheias de suor, esquecidas emboladas no cesto da lavanderia. As louças com fotos nossa gravadas, guardadas no armário da cozinha. O quadro ridículo da pintura de um vaso cheio de frutas comprado por ele e pendurada na parede da sala de estar. O cheiro de perfume barato, completado por água quando prestes a acabar, no quarto onde dormíamos. A tampa do sanitário levantada no banheiro que não ouso abaixar. Ou mesmo os livros amarelados espalhados pelas bancadas do corredor da casa.

Isso tudo começou quando tive o segundo aborto seguido. É difícil manter uma gestação aos 45 anos de idade, mesmo buscando ajuda médica. Talvez isso tenha aberto brecha para as traições do meu marido com a vagabunda da Dorotéia, a nossa vizinha, além da burrice em confiar que ele ia apenas fazer algumas obras na casa dela. Fui sendo consumida pela tristeza profunda, criando raízes feito garras afiadas enfiadas no fundo do meu coração, ao ver mais uma vez aquele bolo de sangue no vazo, flutuando sob a água e depois descendo pela encanação como se não fosse nada. Perdi a vontade de comer, tomar banho, passar um desodorante ou até pentear o cabelo, o qual foi criando nó e mofo. Você já viu um cabelo criar mofo? O meu criou.

Então uma vez ele fez as malas e disse não me aguentar mais, pediu o divórcio sem a menor delicadeza enquanto eu me agarrava as suas pernas. Saiu de casa, na outra semana vi sua maldita foto na rede social assumindo relacionamento sério com aquela putinha de 25 anos. Nosso casamento tinha ido pelo ralo e eu nem vi. Liguei várias vezes para o desgraçado, até ser atendida e ouvir que não podia lhe dar um filho, então não podia dar mais nada, chamou-me de porca, sebosa, tudo quanto era ofensa. Mas sabe qual é o problema? É que mesmo com os erros, ainda o amo. Estávamos juntos desde adolescentes, por isso não consigo acreditar ser possível nossos anos de casados serem deixados de lado assim tão rápido. Sentia lá no fundo uma certeza que vamos reatar, sabe?!

Certo dia estava envolta nesse involucro de lembranças, nessa hora fui andando cambaleante na direção da geladeira a qual só tinha água, pelo menos pensei. No entanto, no fundo daquela caixa gelada, havia um adoçante quase acabando. O segurei firme entre as mãos como se fosse Carlinhos, abri a tampinha e bebi cada gotinha adocicada dali, depois de dias sem comer direito minha barriga revirou maluca. Ele odiava beber café com açúcar, dizia. Ainda de pijama saí de casa desgovernada e ao chegar no supermercado mais próximo comprei de uma fileira inteira todos os adoçantes, estourei o cartão de crédito sem me importar e já de volta estoquei a despensa apenas com esses frascos. Bebi dia após dia do doce, afundada em alucinações, porque a cada vez que sentia o sabor pensava estar novamente no passado.

Tomo outro gole da xícara de chá, enquanto Andréia faz uma pausa e me observa calmamente.

— E como se sente, agora? — Questiona ajeitando seu bloco de notas no colo.

Não sei!

Encaro um pouco ao redor, a sala tinha paredes brancas, dois sofás confortáveis e umas plantas decorativas. Respirei fundo e foquei a atenção à consulta da psicóloga.

— Não sei! Esses meses nessa clínica me fizeram melhorar bastante em relação a comer, tomar banho…, mas ainda sinto muita falta dele, doutora.

— Carlos?

— Não, falo do meu filho, o que perdi. Nunca foi apenas sobre o Carlos, foi o luto das perdas das coisas que mais amei, do aborto, do casamento. Tudo foi abortado de mim muito depressa, entende?