Nicolas Chauvin ou Moacir vem aí.

É normal que o período das festas juninas puxe o debate sobre a cultura da música tradicional, independente da região, sobretudo do Nordeste.
Como o caráter pessoal, a cultura é um caráter nacional ou, particularmente, de um grupo, servindo de IDENTIDADE PERANTE OUTROS. Portanto, uma cultura só existe em relação as outras, como uma pessoa individual só existe perante as demais, respeitando-as: só há identidade pessoal perante pessoas diferentes.
A rigor, cultura é sinestesia: a forma de sentir os modos do mundo.
Sempre que o debate reacende, eu lembro de Irapuan (de Alencar, em Iracema). Tenho comigo duas interpretações para o personagem que me deu o nome: por uma, ele é o guerreiro amante de Iracema, que força, ao seu modo, tê-la, mesmo contra o querer dela. Por outra, ele é o defensor da cultura da sua nação contra a intervenção estrangeira.
De tão aguerrido (digamos, chauvinista), o guerreiro acaba desaparecendo no contexto da narrativa (segundo Bloom, o mais belo poema brasileiro), engolido pelo apelo da morte sofrida de Iracema e da sobrevivência de Moacir: o cearense do mundo.
O debate é saudável, não fossem os exageros argumentativos, que terminam como uma aporia: uma conclusão impossível.
A poesia, notadamente a dos cantadores nordestinos, também é um alvo predileto.
Em ambos os casos, os defensores ‘nacionalistas’ parecem negar o próprio surgimento das variáveis musicais (melódicas) que a música nordestina possui, com influências das outras, bem como as formas da cantoria (as diversas espécies não me deixam mentir).
Uma cultura só é viva (e ela pode, e deve, morrer) quando, em sua dinâmica é sensível ao tempo e à interação com as outras. Algo assim como os idiomas. Apesar de termos ancestralidade no sânscrito, falamos um português (há quem trate o idioma como brasileiro) bem específico, que, com o tempo, tende a mudar; viemos do latim. As confusões nas redes sociais sobre expressões neutras é um bom exemplo.
Como se não bastasse, atualmente a internet permite um mundo mais globalizado numa relação universal instantânea. Demetrinho e eu lançamos um disco que já está sendo ouvido em mais de 10 países do mundo, e nós chamamos o disco de JATOBÁ, apesar do álbum ser uma memória da nossa juventude.
É o tempo! É a disponibilidade! É a acessibilidade!
Quando usam Gonzaga, como se Gonzaga cantasse um único modo de música, o argumento chauvinista peca e demonstra desconhecimento da obra de Gonzaga.
As músicas que Gonzaga canta é uma mixórdia de tudo o que Gonzaga somou à música que ele conhecia do nosso sertão, até porque Gonzaga viveu em quase todo o Brasil recolhendo, até involuntariamente, as suas impressões musicais das mais diversas culturas por onde passou.
O que Gonzaga fez de melhor foi LIBERTAR A CULTURA MUSICAL NORDESTINA da garra ou da TRIAGEM da CASA GRANDE, que limitava os ouvidos do povo, inclusive dos cantadores, aos rádios das casas dos patrões, os doutores.
QUANDO VOLTOU FAMOSO, Gonzaga quis dizer (mesmo na música para Januário) que havia um lá fora daquela caverna, que estava amando as luzes das imagens do sertão.
A partir dele, a timidez dos tantos nomes existentes (cada um com as suas particularidades) é quebrada e aparecem todos, e o Brasil ama todos; o Brasil e o mundo.
Aliás, outro paradoxo ocorre quando algum sucesso brasileiro, nordestino especialmente, é reconhecido fora do Brasil, e isso é aplaudido pelos tais ‘chauvinistas’, que agregam esse argumento às defesas apresentadas.
Ora! Essa relação é biunívoca: do jeito que a mensagem é remetida e aceita, o aceite pode também remeter e espera ser aceitado.
Gonzaga canta na ‘Dança da Moda’ a própria interação cultural, demonstrando, inclusive, que a festa de São João, DE HERANÇA EVANGÉLICA, é também brasileira e transforma o ambiente por onde passa com a sua, digamos novamente, UNIVERSALIDADE.

‘No Rio tá tudo mudado
Nas noites de São João
Em vez de polca e rancheira
O povo só dança e só pede o baião’

Pois bem! Trocaram a polca e a rancheira pelo baião, porque toda cultura é viva.
Outro exemplo, esse mais atual, e que está provocando um reboliço, diz da volta dos ‘RETIRANTES’, que saíram do Nordeste, fugindo do modo de produção feudal (ainda resistente, com outro nome e nuanças peculiares), e, agora estão voltando.
Esses retirantes foram confinados em guetos, aonde foram viver com as suas saudades e estão voltando com as suas famílias para viver no Nordeste, mas com novas versões das músicas que levaram à memória.
Em uma peça de teatro que fiz em homenagem a amigos de infância (Cancão de Dora e Jacinto de Tuniquinha), termino dizendo:

Quando se sai do sertão
Não tem mais como voltar.
A gente forma em saudade
Um lugar para morar
E a ilusão é tão grande
Que não cabe mais por lá.

Eles estão voltando aposentados, com recursos e mudando a forma de sentir os modos do mundo, a cultura local. Lá no Riachão, eles estão ficando, inclusive, com as propriedades – dos seus antigos patrões.
Trouxeram, para isso, novos sabores, que, inevitavelmente, serão agregados à cultura local.
Outro dia, vi alguém dizer que a música ‘Mr. Tambourine Man’, de Bob Dylan, era uma homenagem a Jackson do Pandeiro, devido (VEJAM SÓ!) a interação econômica de Campina Grande, na Paraíba, com o mundo, através da exportação de algodão.
Pode não ser verdadeiro (e, possivelmente, não é), mas é muito bem contado (‘Se non è vero, è ben trovato’).

Respeito, demais, a preocupação dos Irapuan’s alencarianos, mas Moacir vem aí.