Sou um saudosista atemporal. Tenho saudades até do futuro. Aliás, principalmente do futuro. Do que já veio e do que ainda virá. Do que nunca ouvi ou senti e do que se retroalimenta em mim. A memória é sempre o melhor abrigo quando a vida é o palco das nossas escolhas. Não se trata de um lugar ou tempo, mas das emoções que fazem o sentido dessa tempestade que é a vida – com todas as suas delicadezas.
Na virada dos anos 70/80 eu morava em Porto Alegre. Frequentava quase que diariamente a Discoteca Pública Natho Henn. Lá eu misturava sonatas de Bach com as novidades raras da MPB. Discos que não podia comprar e que se pudesse, não teria onde tocar. Era um fronteiriço despossuído. Foi lá onde pela primeira vez ouvi o álbum Luhli & Lucina, gravado em 79. É a música do futuro, pensei. O encantamento foi imediato.
Naquele tempo as rádios não informavam apenas o título das canções e o intérprete. Compositores e compositoras eram citados com destaque. O locutor informava com certa dose de ironia e deboche: “de Costa e Silva, com Simone, Jura Secreta.” Se referia ao talento de Suely Costa e Abel Silva. Era um tempo de descobertas e construções linguísticas elaboradas pela tumba aberta de uma ditadura que sufocou o país.
Não era diferente com Luli e Lucina. Uma grife musical. Certeza de biscoito finíssimo e canções que ocupavam, resistiam e produziam nas memórias dos nossos afetos. Era a resistência amada. Eu lia uma revolução feminina e feminista em cada canção. Mesmo sem saber nada das autoras. Um tipo de confronto antifascista pelas armas da sensibilidade. Uma permanência da psicodelia e das guerrilhas da paz e do amor.
Mas o tempo é uma inexistência que voa. O LP virou peça de colecionador. As mídias são outras. Estamos na era do Iphone 14, da conexão 5G e da “indigência artificial”. Luhli ganhou um h no nome por questões da numerologia. Ganhou também a infinitude dos dias. Hoje vive no passaredo de Mangaratiba. Semeou um amor oceânico e libertário. É Lucina quem está por aqui e abriga Luhli onde todas as vozes são vivas e se misturam.
O século XXI caminha a passos largos e eis que Lucina ressurge nas vitrolas digitais. Claro, depois de longas batalhas pelos seus direitos de criação em todas as plataformas. Uma guerrilha das deusas traçada pela produtora Patrícia Ferraz que também é companheira de Lucina. Um drama artístico de pouca cobertura legislativa no Brasil. A propriedade intelectual ainda é um campo de apropriação indébita e impune por aqui.
Junto com Luhli, Lucina compôs mais de mil canções. Um fenômeno. Essas gatas selvagens inundaram musicalmente o mundo. Sabiam que a arte é um reboliço no tempo. Eternizaram-se na pele e no osso das nossas sensações. Consagraram os Secos & Molhados com “O vira” e “Fala”. Abraçaram Ney Matogrosso com “Bandoleiro” e tantas outras belezuras. Aliás, Ney é o artista que mais gravou a dupla.
Hoje podemos escutar no Spotify a delicadeza que é “Nave em Movimento”. Um álbum que resgata uma pequena mostra do que Lulhi e Lucina produziram celebrando uma vida de plenitudes. A musicalidade de ambas é uma espécie de respiração. Algo que se pode conferir nas plataformas desde Flor Lilás – um compacto gravado em 1972.
Zélia Duncan (que fala um rap no álbum) foi muito feliz e exata quando escreveu sobre Nave em Movimento. “As faixas têm surpresas. Os arranjos vão caindo como gotas suaves nos ouvidos. Como células boas, que dão sentido umas às outras. É tudo um. É tudo uma e outra. É tudo a dupla. Uma partitura de delicadezas e forças que se revezam.” Uma descrição na medida da beleza imensa e intensa que há nesse trabalho.
Para esse álbum juntaram um time respeitável de músicos. São eles: Bruno Aguilar, Curumin, Décio Gioielli, Elione Medeiros, Gustavo Cabelo, o incrível Jaime Além, Jorge Mathias, Marcelo Caldi, Marcelo Dworecki, Maurício Cajueiro, Murilo O7339, Reilly, Ney Marques, Otávio Ortega, Peri Pane e Wallace Cardia. Para completar, o álbum traz a participação especialíssima de Zélia Duncan, Julia Borges e Arruda. A capa é uma foto de arrepiar, do Luiz Fernando Borges da Fonseca. Vai lá conferir!
Lau Siqueira
Gaúcho de Jaguarão, mora em João Pessoa desde os anos 1980. Escritor, poeta e cronista, tem diversos livros publicados, participou de antologias e coletâneas. Ex-secretário Estadual de Cultura da Paraíba.