Foto/crédito: de Astier Basílio no Sítio Gavião, de Fagundes, de João Batista, promotor de cantorias

Para que aconteça uma cantoria é necessário que haja apenas dois elementos: uma dupla de repentistas e uma plateia disposta a ouvi-los. Só que até sintonizar estes dois pólos são necessárias algumas ações prévias. Mas como se dá a organização do evento? Como são feitas as tratativas? O que é necessário deixar acordado previamente?

Antigamente, no período que eu poderia situar mais ou menos, até finais meados da década de 1960,  era comum os cantadores saírem sem um rumo certo, ou quando muito, com uma cantoria apalavrada em determinado sítio ou fazenda. Minha afirmação é feita a partir dos relatos que ouvi de vários repentistas, principalmente de meu pai, que chegou a andar léguas e léguas sertão adentro em busca de que o ouvisse cantar. 

Raros eram os cantadores de dispunham de um transporte próprio,  o mais comum da época era o cavalo. Foi o que me disse, José Alves Sobrinho, importante repentista e grande pesquisador do repente.  Ele me falou que Pedro Amorim era um dos poucos que dispunham de tal luxo. Por muito tempo, os poetas cruzavam grandes distâncias a pé, dormindo no meio do mato, ou valendo-se da hospitalidade do povo que morava na zona rural. 

Ao chegar em algum sítio ou vilarejo, o repentista andarilho se identificava e perguntava se havia pelas redondezas alguém que gostasse de cantoria. Sempre havia. E seria aquele abnegado que iria oferecer teto, alimentação e promover uma cantoria. 

Quando o rádio abriu as portas para os repentistas, tinha prevalência o poeta que houvesse cantado em algum programa. Era uma espécie de cartão de visitas, dizer: já cantei no programa de Antônio Américo, na Rádio Espinharas; já cantei no programa de José Gonçalves, na Rádio Borborema, etc.

Num tempo de comunicação limitada, era prática comum que o repentista, ao microfone da rádio, avisar que estaria de passagem por determinada localidade e pedia a algum amigo ou compadre que organizasse o povo para a cantoria a ser realizada dali a alguns dias. 

Com o tempo, a democratização dos meios de comunicação e seu aprimoramento, o tempo romântico dos poetas que venciam distâncias com a sola da bota ficou no passado, mas manteve-se a prática do “trato”.

Um “trato” de cantoria é, portanto, um acordo firmado entre o repentista e o organizador também chamado de “contratante”, “promotor”, mas todas estas categorias se abrigam numa só denominação: “o dono da cantoria”. É sua prerrogativa: 1) alimentar os cantadores antes de cantar e, antigamente, prover-lhe dormida 2) cuidar das condições para a realização da cantoria, ou seja, chamar os amigos, garantir que haja uma boa paga 3) organizar o espaço, dispor as cadeiras, escolher o melhor local onde a apresentação deve ocorrer 4) colocar a bandeja (em geral depois dos primeiros baiões) e ser o primeiro a pagar, geralmente, com uma boa paga com o intuito de estimular os convidados a seguirem seu exemplo –   colocar uma cédula de baixo valor ou não pagar é sinal de desrespeito. 

O trato pode se dar de várias maneiras: desde fixação de uma quantia mínima – em geral, tal expediente ocorre quando um dos poetas é de outra região, com o intuito de arcar com as despesas de deslocamento – passando pelo que os poetas conseguirem de contribuição,  até a responsabilidade de acrescentar ao apurado na bandeja caso a quantia final não tenha sido satisfatória. Outra modalidade possível é a da cobrança de ingresso.  Em geral, quando ocorre, não é comum que coincida com a presença da bandeja, embora tudo dependa muito da relação entre o dono da cantoria com a plateia. 

Com o nível de profissionalização empreendido por Ivanildo Vila Nova e aprimorado pelos Nonatos os tratos passaram a ser acordados previamente. Repentistas mais conhecidos estipulam um valor mínimo para suas apresentações, mas não é algo que se estenda a todos os demais, vigendo ainda os mais diversos tipos de arranjo.  

Nesta relação, há muitas questões que são subentendidas e não ditas, mas constituem códigos que vão regendo a relação entre o dono da cantoria e os repentistas. Um bom repentista é alguém que dispõe de um ou de vários ambientes, ou praças. Ou seja, de uma cartela de amigos com os quais pode contar para revezar suas apresentações. É um capital adquirido ao longo do tempo.  Não é ético que um repentista, por exemplo, que foi convidado entre, pelas costas, em contato com um apologista da base de seu colega e proponha um trato com outro poeta. Na maioria das vezes essa tratativa é relevada ao repentista pelo seu amigo, apologista,  como prova de lealdade.

Quando o contratante vai fechar uma cantoria ele pode ou não pedir ao repentista que convide determinado poeta. Muitas vezes não: o repentista fica livre para convidar outro colega, o que lhe confere prestígio e o ajuda a tecer sua rede de contatos num meio em que a reciprocidade pode definir a reputação de um cantador com os seus pares. 

Alguns repentistas aceitam realizar apresentações que não foram previamente contratadas, mas é uma situação rara. Acontece da dupla de poetas, ao circularem com suas violas, serem abordados por pessoas, na maioria das vezes num bar, que solicitam uma apresentação particular, mediante pagamento. Geralmente, tal convite parte de algum apologista que sabe como funciona uma cantoria. O saudoso repentista José Vicente, de Boqueirão (não confundir com o veterano José Vicente da Paraíba) costumava chamar este tipo de trato de “queda de asa”. É uma apresentação mais curta e para um número menor de pessoas. 

Na semana que vem, vamos nos aprofundar na figura do dono da cantoria.