Antonio Serafim da Silva era o seu nome de batismo. Popularmente chamado de Véi do Saco. Quem não o conhecia? Sem dizer uma única palavra, sem jamais usar computador nem redes sociais, era talvez o homem mais conhecido e mais popular da cidade. Não faz muito tempo, a cidade se preocupou quando ele deixou de ser visto. O Véi do Saco morreu? Era o que se perguntava com alguma preocupação. Qual não foi o alívio geral quando os jornais anunciaram que não, ele estava vivinho da silva e continuava carregando o seu misterioso saco pelas ruas da cidade, indo de lá para cá e de cá para lá sem necessariamente ter um objetivo a alcançar, onde chegar, onde ir, onde repousar.

Eu era adolescente e muitas vezes eu o encontrei dentro do ônibus que servia à periferia do Oitizeiro onde eu morava. Os passageiros se incomodavam com a presença daquele homem, que naquele momento ao invés de um saco carregava um balaio. O cheiro que vinha de sua pele, de suas roupas, de todo ele era algo próximo ao insuportável, e era disso que os passageiros reclamavam. Não sei se foi por excesso de reclamação que ele passou a andar a pé, carregando um imenso balaio na cabeça. Sempre vestindo duas, três roupas ao mesmo tempo, camisa, paletó, calça por corda amarrada, um sapato de uma cor, outro de outra, furados, estourados de tanto que ele caminhava pelas ruas da cidade.

Antonio Rasga Rua – foi assim que o poeta Águia Mendes o chamou quando fez um curta-metragem documentário sobre ele.

O Rasga Rua – foi assim que eu o chamei quando escrevi um romance não documental que o tem como personagem central.

O Véi do Saco, Cheiroso, Sete Capas, Galego e outros nomes menos populares – era assim que a cidade o chamava.

Fosse que nome fosse Antonio desde muito cedo jamais passou despercebido pelas ruas. Numa sociedade em que os mendigos são via de regra invisibilizados, tratados como rebotalhos, Antonio, ao contrário, sempre foi visto e foi aos poucos se tornando um patrimônio público e humano, um monumento móvel que era visto aqui e acolá, e que em certos momentos – um banho que alguma alma eventualmente lhe dava, um corte nos cabelos longos e endurecidos de sujeira, uma rara troca de roupa, muito do que acontecia a Antonio era anunciado como notícia no jornal.

Antonio tinha o mesmo status cultural que Vassoura, Maria Isabel Bandeira Brasileira, como ela mesma se chamava, e que para o seu desespero a cidade gritava Vassoura! quando ela passava a pé ou montada no seu magérrimo rocinante. Sim, a cidade se divertia com a reação agressiva de Vassoura. Eu era menino, indo para a escola, e não conto às vezes que tive de correr da sua fúria brandindo um ameaçador chicote quando a molecada gritava para ela o nome maldito. Sim, Vassoura não tinha paz. A maldade das gentes não lhe deixava esquecer o apelido que a enfurecia e frequentemente lhe fazia abrir a boca aos gritos tecendo desairosos elogios às mães de quem lhe chamava Vassoura.

Mas com Antonio, não. A cidade não ria daquele mendigo. De certo modo, a cidade o protegia naquele seu caminhar sem fim pelas ruas que eram as alamedas do seu próprio labirinto. Uma vida inteira que poderia ter sido e que não foi, como diria Bandeira de si.

Pois bem, esse homem que tinha casa, tinha família e que mesmo assim tudo abandonou para viver pelas ruas, ontem, por ironia do destino, morreu na sala da casa de sua sobrinha, aos oitenta e um anos de idade. Havia deixado as ruas há cerca de dois anos, depois de acidentado. Creio que nunca um mendigo viveu tanto tempo ao relento. Creio que jamais um mendigo foi tão querido pela comunidade.

A ele devo a inspiração para um romance, O Rasga Rua, recentemente editado pela A União, mas ainda não oficialmente lançado. Eu o farei em breve. Embora Antonio seja a personagem central do romance, desde já eu adianto de que não escrevi a biografia do mendigo que se tornou ícone em nossa cidade. Eu não escrevi sobre aquele homem cujo grande feito foi o de ter vivido anos e mais anos ao desabrigo do sol e da chuva. Escrevi sobre um mito. Um mito cujo rito era o de caminhar caetaneando contra o vento, sem lenço, sem documento, rasgando as ruas com seus passos lentos no descompasso do seu traço sem linhas nem retas, sem curvas e sem metas.

Não escrevi sobre Antonio, mas sobre o amor, a solidão, o abandono. E ontem Antonio partiu num repente. As ruas desta cidade não são mais as mesmas desde quando ele foi viver no abrigo de um lar. Agora viverá por muito tempo no imaginário desta cidade de João Pessoa, Paraíba outrora chamada.