O que seria de mim, meu deus, sem a fé na poesia, eu não sei, nunca soube e jamais saberei, porque não sou capaz de imaginar a vida sem arte, e isso é algo que somente eu sei agora, pois nunca eu soube o que aconteceria sem ela que jamais abandonei, desde muito pequeno, desde quando eu menino lia as fotonovelas que a minha irmã lia, e essa era praticamente toda a literatura, toda a arte que havia em minha casa tão cheia de irmãos e irmãs, tão cheia dos seus amigos, tão plena de conversas e de violências às vezes nem tão veladas, sim, o que me salvava desse mundo no qual eu estava imergido, agora eu sei, era a arte, eram os livrinhos infantis que de vez em quando me caíam às mãos, e depois, a leitura das novelas em fotos, e, principalmente, àquela que me abriu as portas da literatura avançada, quando eu li Os Irmãos Karamazov e, logo em seguida, a edição em capa dura vermelha que a Abril Cultural lançou a preços populares, de clássicos da literatura universal, e que o meu pai me deu depois de alguma insistência, pois ele não acreditava que um menino de quatorze anos que jamais havia lido algo além de fotonovelas e histórias em quadrinhos – elas também foram uma paixão de infância -, que um menino entrando pela adolescência leria algo como tal, capaz de espantar qualquer adulto do meu círculo familiar. Para assombro e alegria do meu pai, eu o li, embora pouco o compreendesse, eu o li pela primeira vez – leitura que se repetiria duas ou três vezes ao longo do tempo, e sem o saber, eu vivia a primeira epifania que a arte me deu. Esses momentos mágicos foram se repetindo, me fazendo mergulhar mais e mais naquilo que eu não compreendia, mas o desejava assim mesmo, pois o prazer que me atingia o espírito era de tal ordem que eu o buscava como quem procura um remédio milagroso para me livrar do mal estar no mundo, do meu mundo de menino deslocado, de rapaz que não se entendia no meio de machos beberrões, grosseiros e mal educados, como eram sem exceção todos aqueles que me rodeavam a família, os meus cunhados, e depois os meus próprios irmãos. Cada romance era em si uma epifania. Mas a maior de todas, aquela sem a qual eu não mais poderia viver desde então, foi quando eu assisti pela primeira vez uma peça de teatro.
Essas memórias me ocorrem agora, quando eu, acamado de gripe, neste dia vinte sete de março, dia internacional do teatro, vejo os amigos de profissão postando fotos de seus espetáculos, das personagens que viveram nos palcos, em celebração deste dia que para qualquer outro é um dia prosaico, mas para nós que dessa arte fizemos a razão de nosso viver, é um dia santo, um dia sagrado, um dia que me faz mergulhar dentro de minha própria história e rever o que significa o teatro para mim desde o primeiro momento, desde o deslumbramento por algo secreto que o teatro trouxe para mim.
Ter visto um espetáculo pela primeira vez, meu caro, minha cara, não sei, não tenho palavras para expressar o sentimento com que aquilo me atingiu como um raio que me partiu em dois, que abriu, como nada antes, portas de percepção extra sensorial, eu penso, algo que nenhuma droga, maconha ou ácido, álcool ou peiote, ou o que for, essas drogas que são os veículos por onde o sagrado se manifesta no humano, nem mesmo a jurema ou ayahuasca que me castigaram pela minha descrença nas formas canônicas de religiosidade, nada foi capaz de me revelar a dimensão do sagrado tal como o teatro o fez, e faz.
O espetáculo de teatro que eu vi quando ainda adolescente me levou primeiro para dentro de sua literatura, e somente depois para o palco. Foi quando eu li Édipo Rei pela primeira vez. E aí, outra inesperada epifania, quando na cena em que o infeliz rei descobre que ao tentar fugir do seu destino maldito, ele o cumpre rigorosamente, e por não suportar a luz que clareia a revelação do seu crime, sem saber que essa luz era a própria consciência de si mesmo, fura, com os alfinetes retirados das vestes de sua própria mãe e esposa, que acabara de se matar, fura, o infeliz, os seus próprios olhos, sem saber que a luz que ele tentava não ver não era a do sol, mas a de si mesmo, o facho tênue que ilumina, sem que saibamos, os caminhos do nosso próprio destino. O que seria de mim, meu deus, sem a fé na poesia, o que seria de mim quando ao ler este momento crucial da vida do herói, o que seria de mim se aquilo não tivesse doído intensamente em meus próprios olhos como se fosse eu o Édipo de mim mesmo.
O que seria de mim, meu deus, não fosse aquela dor intensa em meus olhos, o que seria de mim se aquelas agulhas imaginárias não tivessem penetrado nos olhos de minha alma, o raio que outra vez penetrou em meu espírito iluminando o meu caminho para a arte, para o teatro, para o sacerdócio de representar.
Paulo Vieira de Melo
Ator, escritor e diretor.