Está lá, no fascículo 125 da coleção Cadernos de Teatro, editado em abril de 1991, a publicação de uma peça teatral sobre conflitos conjugais… O autor, um certo polonês chamado Karol Wojtila – que não era outro senão um dos ocupantes do Trono de São Pedro no Vaticano, o saudoso Papa João Paulo II.

Em algumas passagens de sua biografia, várias vezes foi dito que João Paulo II tivera, em sua juventude, uma experiência com o teatro. Chegara a ser ator e, também, uma espécie de “Mobilizador”, ou “Agente Cultural”, já que organizava encontros de teatro em sua terra natal. Poucas vezes, no entanto, tem sido revelada uma outra faceta de Karol Wojtila: a de dramaturgo!

Publicada originalmente sob o título de “La Boutique de L’Orfevre”, a peça “A Loja do Ourives”, traduzida no Brasil por Dom Marcos Barbosa, não é nenhuma peça “religiosa”, como se poderia esperar. Mais curioso ainda é o fato de não ser um texto de cunho moralizante, na medida em que se aprofunda em angústias e conflitos de casais atrelados aos mais diversos destinos.

Neste sentido, chega a ser uma peça “mundana”, sem nenhuma acepção pejorativa, pois é “mundana” por se colocar em pé de igualdade a tantos outros dramas que refletem, e analisam, os altos e baixos de um casamento. A diferença está na linguagem – que é terna, lírica e… romântica, o que acaba confirmando o dedo de um autor que está contextualizado na peculiaridade do sacerdócio.

“A Loja do Ourives” foi publicada pela primeira vez em 1960, numa revista polonesa. Karol Wojtila tinha menos de 40 anos e assinou-a sob o pseudônimo de Andrzej Jawien. Naquela ocasião, era bispo auxiliar de Cracóvia e, à sombra de um pseudônimo, definiu sua peça como “uma meditação, passando em certos momentos para o drama”.

Essa “meditação”, de fato, confirma-se nos inúmeros monólogos de seis personagens que, à frente da loja onde foram compradas as suas alianças de casamento, refletem sobre passado, presente e futuro de relacionamentos amorosos que tiveram destinos diferentes. Karol Wojtila conta três histórias de amor para, no final, de maneira surpreendente, redundá-las numa só história, apresentando o encontro desses casais para dar-lhes uma unidade que seria a unidade do amor, ou o núcleo de uma trama que se recheou de tragédias humanas como a separação, a guerra, a angústia e a incerteza dos sentimentos. Como vemos, são temas bem recorrentes, normalmente visitados pelos autores mais modernos.

O casal André/Tereza simboliza o amor perfeito, que se ama e se entrega sob o compromisso de tornar-se um único ser, e está diante da loja do ourives para adquirir o seu par de alianças. Na segunda parte, vamos conhecer outra história, a de Ana e Estêvan, já numa fase bem avançada de um casamento desgastado. Ana também se encontra na frente da mesma loja onde, anos antes, foi adquirido o seu par de alianças. Ali, reflete sobre o desgaste de seu relacionamento, e deseja ardentemente encontrar um novo parceiro enquanto Estêvan passeia entre as “moças da noite”.

Temos então, numa terceira parte, o casal Cristóvão/Mônica, que será o resumo dos anteriores. Estão também diante da loja do ourives e vivem um impasse para o casamento previsto. Quando acompanhamos o seu drama, em nenhum momento suspeitamos que cada um dos dois jovens é filho daqueles casais que já passaram. Mônica não está segura quanto à felicidade do seu futuro, pois vive traumatizada pelo péssimo exemplo dos pais. Já Cristóvão projeta sua segurança com base na felicidade dos seus, revelando que seus pais se amaram intensamente, embora esse amor tenha sido interrompido pela tragédia da guerra, onde ele perdera seu genitor.

A surpresa se revela no momento em que o autor, através de seus personagens, informa que o jovem casal é filho dos anteriores. É quando temos o ponto mais alto da trama, pois novamente localizamos aquelas duas histórias que vêm se juntar ao drama do momento para o clímax final. Fica a mensagem de que o mais jovem casal é a continuação dos outros dois, e que haverá enfim a felicidade que faltara nos outros.

Com essa peça, João Paulo II, anos antes de seu pontificado, escreveu uma espécie de “evangelho do amor” – e o amor homem-mulher, com suas tristezas e alegrias, sonhos, esperanças, desejos. “A Loja do Ourives” pode ser lida como obra literária totalmente isenta da condição religiosa de quem a escreveu, pois não possui um princípio de dogma e sim uma expressão de problemas humanos tão presentes. A linguagem, da mais fina literatura, alterna-se entre o diálogo dramático e narrativas intimistas que lembram bem um romance moderno.

Não conhecemos as razões do autor em ter adotado um pseudônimo – mas, em que pese o mérito artístico da obra, e não vendo nela qualquer imprudência sacerdotal, a Igreja Católica só teria a ganhar com a publicação desse texto para a humanidade.