As lembranças que tenho de primeiras leituras e escritas, ainda na infância, levam-me ao folheto de cordel e à imagem do meu avô materno. Trazido das feiras dedomingo na bolandeira. Alguns folhetos eram lidos em voz alta para a meninada, sob o céu estrelado na calçada de casa. Assim, no fascínio da minha infância, chegavam-me as histórias de príncipes e princesas de reinos distantese das aventuras contadas por Leandro Gomes de Barros. E os primeiros versos com letra miúda eram desenhados na parede da sala, para que não pudesse esquecer. Aos poucos os folhetos passaram a ser substituídos por livros, tanto prosa quanto poesia.

O meu retorno à literatura de cordel se deu nas aulas de graduação do curso de Letras, quando um dos professores de literatura mencionava nomes de cordelistas famosos como Firmino Teixeira do Amaral, Patativa do Assaré, além de muitos outros.

Voltaram-me à memória os tempos de criança e o desejo inicialmente de pesquisar e atribuir ao pai do cordel como criador de uma literatura própria brasileira, a literatura de cordel. A partir de então passei a buscar os folhetos e cada vez mais, via com familiaridade os temas tratados, a métrica adotada na construção dos poemas, o mistério e a magia que povoavam a meu universo de criança.

Não consegui provar naquele momento que Leandro Gomes de Barros criou um estilo próprio de literatura, não havia na academia tantos estudos, mas minha busca pela literatura de cordel continuou, chamou-me a atenção o fato de que, somente homens cordelistas eram lidos. E as mulheres cordelistas? Como elas escrevem cordel? O meu questionamento veio com a afirmação de Sílvio Romero nos estudos sobre a poesia popular do Brasil (1888), onde observa: “as mulheres não são somente o principal arquivo das tradições orais; são também as autoras de muitas destas tradições.”. O Pesquisador menciona vários exemplos de cantigas, às quais se confere a autoria feminina, dada à doçura de sentimentos, a suavidade das estruturas dos versos, propriedades, segundo o autor, nem sempre encontrados em versos de autoria masculina.

Existem diferenças entre os folhetos escritos por homens e os folhetos escritos por mulheres? Por que não tínhamos acesso a obras literárias escritas por mulheres com a mesma fluidez encontrada dos homens cordelistas? Inquieta com tantos questionamentos me empenho em encontrar essas mulheres. A entrada delas no mundo das letras é recente. Só a partir dos anos 1970 se tem notícia de cordéis assinados por mulheres. Mas onde estão essas mulheres? Qual o lugar elas ocupam nas letras, nas academias, na sociedade?

E o encontro com tantas mulheres cordelistas trouxe-me respostas para todas as questões e hoje as mulheres na literatura de cordel, se apresentam como se sentem, como absorvem as tradições, constroem novos caminhos em que sua voz possa ser escutada, rompem com a herança cultural que colocou à mulher a um lugar de silêncio. Trazem na linguagem os conhecimentos com temáticas atuais da comunidade em que estão inseridas, seja na construção narrativa, na estrutura ou no ritmo como também na linguagem oral, de modo a produzir, por um lado, um jeito lúdico em quem escreve e em quem lê utilizando uma linguagem com mais ritmos, a partir de acontecimentos históricos que realçam a cultura, os sentimentos, e ainda a forma de como enxergam o mundo.

Na Antologia Cordel do Encanto Feminino, apresento trinta cordelistas de vários estados da região nordeste, que se utilizam da forma de manifestação popular e deixam fluir sua poeticidade. Desse modo mudar os rumos da Literatura de Cordel, considerada como propriedade privada dos homens. O projeto foi abraçado pela Editora Arribaçã, nascida no Alto Sertão da Paraíba, cidade de Cajazeiras, que dá vozes a trabalhos literários de autoria feminina.

 


É
de Maria das Neves Batista Pimental (primeira mulher a publicar um cordel) a Anilda Figueiredo (da Academia Brasileira de Literatura de Cordel e da Academia dos Cordelistas do Crato – Ceará) e Ione Severo (cordelista paraibana da cidade de Pombal – terra de Leandro Gomes de Barros), além de tantas outras escritoras ainda desconhecidas dos leitores que a literatura de cordel de autoria feminina se fortalece e se expande por esses sertões nordestino e Brasil a fora.

Assim, as poetas da Antologia de Cordel do Encanto Feminino convidam o leitor para conhecer a construção da identidade do cordel feito por mulheres na atualidade de forma irreverente, contestadora e irônica, que se apresenta através de seus versos, que o cordel é delas!

 

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Porcina Furtado é natural de Sousa/PB. Poeta, atriz, professora e produtora cultural. Graduada em Letras pela UFPB. Pesquisa as mulheres que escrevem no sertão paraibano.  Tem publicações em diversas antologias. Dois ebooks publicados em https:// porcinafurtado.wordpress.com/. Publicou o livro de poesias “Ilha Perdida”, pela editora Arribaçã, 2021.