Esta semana fiz uma verdadeira imersão no XIII Congresso Brasileiro de Agroecologia – CBA que aconteceu na Universidade Federal do Vale do São Francisco – UNIVASF. Uma grande universidade brasileira nas margens do Velho Chico, em Juazeiro da Bahia. Circulando nas rodas de conversa e observando as plenárias, as minhas memórias eivadas de afetos e silêncios, afloraram como vagalumes numa noite escura.
Acompanhei o Congresso como um visitante atento e pude perceber o quanto é ampla e diversa a pauta da agroecologia. Lembrei uma frase de Clarissa PinkolaEstés: “escutar é um ato sagrado. É permitir que o outro exista plenamente diante de nós, sem correção, sem pressa”. E foi o que fiz. Apressei a escuta para não perder uma só palavra e, claro, perdi quase todas em várias direções. Só não perdi o tempo. Aproveitei o que pudepara escrever o que senti e sinto.
Se algo me emocionou? Tudo ou quase tudo. Foi tudo perfeito? Claro que não. Afinal, “a perfeição é uma meta/ defendida pelo goleiro/ que joga na seleção”, como canta Gilberto Gil. Uma das coisas que o CBA me ensinou foi exatamente o enorme poder das imperfeições.Principalmente as que nos ajudam a pensar. Ouvi gente reclamando de coisas específicas. E vi uma mesa de autoridades formada por uma maioria absoluta de homens brancos falando para uma plateia com maioria absoluta de mulheres de todas as peles.
Sim, o CBA é um congresso majoritariamente de mulheres de todas as peles e regiões, misturadas com pesquisadoras e pesquisadores de diversas áreas e peles. Cada qual com plena noção do protagonismo que representam. Vi pesquisadora com fala firme e contundente, seguida de uma ex-sindicalista falando na mesma linha e uma agricultora deixando claro que o que as sustenta, pode até ser chamado de resiliência, mas é pura teimosia.
Descobri no primeiro dia a sintonia da minha origem campesina como congresso. Era minha vó Ana que estava cobrindo o meu silêncio. Ela que criou os filhos no cabo da enxada no início do século XX, sozinha após ficar viúva muito cedo. Também era meu tio caçula paterno que agonizava e teve como causa mortis um estranho afogamento num banhado de pouco mais de um palmo, numa área de feroz disputa por cada hectare. Eram anos de muitos e estranhos silêncios.
Em algumas mesas rememorei meu pai espalhando hortas e minha mãe plantando flores num jardim estendido, uvas numa pequena parreira e morangos nos espaços mínimos da entrada de um galpão que abrigava uma charrete e uma cocheira com um cavalo e depois virou garagem para oDogginho da minha irmã. Aprendi nas trocas com a vizinhança num bairro periférico de Jaguarão, na fronteira com o Uruguai, que nunca estamos sozinhos de fato.
Nas noites quentes, ficávamos na frente da casa ouvindo os grilos e delirando com os vagalumes. Cada fala que me encantava, eu via os mesmos vagalumes iluminando o mundo naquelas tardes quentes de Juazeiro. Eu vi os vagalumes quando alguém falou que a preservação está ligada às práticas muito antigas e que “semente não é pra vender”. Princípios básicos de um sentimento coletivo.
Lembrei meu pai usando palha de arroz para forrar a cocheira e depois, a mesma palha com o cocô do cavaloadubando o milho que o cavalo iria comer para produzir mais adubo e para meu pai colher mais milho. A reflexão da semente enquanto mercadoria nos remete para os alertas que foram dados quando do surgiram as sementes transgênicas. Mais ainda quando o veneno entrou na lavoura e passou a produzir mais que agricultura para exportação, também doenças.
Hoje faço minhas compras em supermercados preferindo o cará ao inhame, mas descobri que existem 19 variedades de inhame. Descobri também que agroecologia não é um modelo pronto, mas uma prática permanente de trocas e afetos. Toda aquela diversidade humana que vi nas quebradas do CBA traziam consigo um conjunto de práticas que se colocam em confronto com o modelo econômico da agroindústria que envenena rios e, sim, produz alimentos, mas contaminados com agrotóxicos proibidos em muitos países.
Descobri ainda que não haverá agroecologia e alimentação saudável se não nos aproximarmos dos povos originários e seus vastos conhecimentos. É dos quilombos e das aldeias que, além do alimento saudável, aprendemos a relação com o meio-ambiente e a convivência saudável entre os diferentes. Claro que tudo isso é encantador pelas verdades que traz. Todavia é o agronegócio que atropela tudo, devastando em razão do aumento infinito de lucratividades privadas.
As práticas da agricultura familiar, todavia, são imensamente benéficas não apenas para os pequenos agricultores, assentados ou em ocupações. Os benefícios são também para uma sociedade intoxicada das formas mais diversas. Apesar de alguns pequenos produtores também se sentirem forçados a meter as mãos no veneno para sobreviver e depois buscar auxílio no SUS nos Hospitais do Câncer que se espalham como benefício de combate à doença, sem discutir as causas.
Foi da boca de uma assentada que eu ouvi uma das frases que mais ecoou nos meus ouvidos: “sem mulher, não há agroecologia”. Pois foi de mulheres e homens do campo que ouvi e vi experiências sustentáveis de esgotamento sanitário, de plantio em pequenos espaços. Foi no CBA que recebi uma cartilha sobre agricultura familiar e clima. Foi onde testemunhei mais uma vez a importância de tecnologias baratas, práticas e inovadoras como a cisterna de placa. Algo que acabou com a era da lata d’água na cabeça que inspirou os cancioneiros Jota Junior e Luiz Antônio e fez sucesso nos anos cinquenta com a diva Marlene – uma das cantoras do rádio.
Sim, foram vagalumes que eu vi brilhando nos olhos de pesquisadores, pesquisadoras, mestres e mestras indígenas e quilombolas. Na predominância circular nos “Tapiris de Saberes”, na feira e nas cirandas. Na força cultural absurda da diversidade que permite a presença e as observações de um “ateu ecumênico” como eu numa relação respeitosa com o sagrado das religiões de matriz africana, nos ensinamentos e da musicalidade dos povos indígenas. O Brasil tem jeito. Basta eclodir por aí os ensinamentos desses grandes mestres e mestras que ouvi como um grilo que calou diante das luzes.
Lau Siqueira
Gaúcho de Jaguarão, mora em João Pessoa desde os anos 1980. Escritor, poeta e cronista, tem diversos livros publicados, participou de antologias e coletâneas. Ex-secretário Estadual de Cultura da Paraíba.