– Mulher, ainda bem que eu vi na hora que a menina tava colocando a boneca na bolsa.

– Já imaginou o que ia acontecer na escola quando ela mostrasse essa boneca pras coleguinhas?!

– Né isso!!! Na inocência de Bia, o absorvente era uma fralda. E o pior foi eu ter que explicar que aquilo não era uma fralda.

– Se alguma coleguinha reconhecesse que a “fralda” da boneca de Bia era um absorvente, iriam rir da cara da bichinha! Ai, meu Deus! Ainda bem que você viu.

– “Não é uma fralda?! E é o quê, então?!!”… Dei uma resposta meia boca, como se diz, porque eu não soube como explicar a ela que aquilo não era uma fralda…. Enfim, saímos de casa com a promessa de passar numa farmácia e comprar as fraldas para a boneca. Tive que dar um bronquinha também para ela não mexer mais nos “protetores de pés” da mamãe.

– “Protetores de pés”?! Foi isso que você falou. HAHAHAHAHAHA!

– HAHAHAHAHAHA! Foi o que me veio na cabeça naquela hora. “Protege os pés da mamãe pra não dar calo”. HAHAHAHAHA… Foi isso…

Essa conversa era travada por duas mulheres adultas num banco de parada de ônibus. Conhecidas, amigas ou comadres, havia entre elas um elo. Conheciam-se, era evidente. Conheciam os filhos e as filhas uns dos outros. Eram cúmplices. Podiam confessar “os delitos” dos seus e zombar deles.

E a ouvinte?! Uma transeunte sentada em um banco vizinho. Dessas que têm uma antena captadora de várias estações ao mesmo tempo, absorvida na leitura do mundo. Transeunte que, naquele instante, ouvindo aquele diálogo (certamente) tão cotidiano se sentiu perturbada.

Um turbilhão de questões a atropelava: Por que que uma pessoa que menstrua sente vergonha de um absorvente? Por que um absorvente seria motivo de risos? Qual o problema em explicar, de uma forma adequada para a idade da criança a função de um absorvente? – Sobretudo, para uma menina cisgênera. Não irá ela fazer uso desse artefato mensalmente, por um longo período de sua vida?  Para uma pessoa que menstrua que não seja nem esteja acometida de algum tipo de enfermidade, menstruar e usar absorventes é tão óbvio quanto aplicar um curativo sobre um ferimento que sangra. Contenção!

Mas aí, a mente em ebulição jogava a transeunte para sua labuta diária e os tabus relacionados aos absorventes e à menstruação que ela já tinha ouvido. Eles vieram à tona em múltiplas memórias de episódios resgatados do bocado de anos que estava em sala de aula. É, a transeunte é professora. E nas escolas em que ensinou e ensina, já presenciou meninas cigêneras, meninos Trans e Transmasculines com olhares, caminhadas e falas furtivas quando menstruavam. Quando precisavam de um absorvente. Quando necessitavam fazer a troca. Quando não estavam preparadas/os/es para que a “regra” chegasse.

E se deu conta, que mesmo nesses ambientes, espaços de educação e saberes, tocar nesses nomes suscitava uma certa repulsa, vergonha e até risos. Lembrou que durante muito tempo e em várias civilizações a menstruação era sinônimo de mal agouro, era período de impedimentos de certas tarefas feitas pelas pessoas que menstruam porque poderia causar algum tipo de dissabor, de infortúnio, ou de tragédia com a colheita, com os animais, com a prole, com a tribo. Era feio, fétido e feminino demais para ser aceito.

Associaram um processo natural a uma aberração, a algo nojento e sujo, a alguma coisa proibitiva e vergonhosa. Coisa de que não se fala, e se se fala, se fala na surdina. Escondendo o absorvente no bolso, passando de uma mão a outra por baixo das mesas e carteiras escolares, cobrindo o sangue entre as pernas com casacos, chamando as mães, as irmãs, as pessoas que menstruam mais experientes para um socorro imediato. Vergonhoso estar “naqueles dias”. Vergonhoso ser mulher. Vergonhoso demais para habitar um corpo Transmasculine.

De volta para sua realidade, quando as pessoas se agitaram para subir no ônibus que acabara de chegar, concluiu que havia muito para se evoluir na humanidade. Concluiu que vivíamos sobre a égide de um moralismo caduco e desnecessário, de um conjunto de regras proibitivas e segregacionistas que dia após dia apontam defeitos e deslizes até mesmo nas coisas que deveriam ser compreendidas como as mais ordinárias de todas.

Um mundo que ainda demoniza as mulheres e suas muitas formas de ser no mundo; que oprime o universo das feminilidades; que abjeta os fluidos humanos (sangue, sêmen, suor)… Que ainda ri da inocência de uma criança diante de um simples e “maternal” absorvente.

 

Bia Crispim (@bia_crispim)

Professora, escritora e colunista
Doutoranda na área de Literatura Comparada
Estudante e “bibliófila”
Travesti
Militante LGBTQIA+